Naquele dia da primeira quinzena de maio, a cidadã verificou que precisava de obter uma certidão da Segurança Social comprovando a inexistência de dívidas. Entrou no portal “Segurança Social Direta” e ficou a saber que tinha uma dívida de cerca de 984,81 datada de 2004/5/7, quando iniciou a sua carreira como trabalhadora independente.
Surpreendida, reviu o seu percurso profissional e chegou à conclusão de que havia lapso. Dirigiu-se então a um balcão da SS em Lisboa, tendo recebido uma senha que a remetia para atendimento em agosto deste ano, tal como tinha sido remetida para dezembro em balcões do Cidadão de Lisboa e Mafra, para conseguir passaporte para um filho.
Escreveu então à SS expondo a situação. Recebeu como resposta escrita a confirmação de que estava em dívida perante os serviços de Segurança Social, mas que as mesmas já tinham prescrito. Que dissesse o que entendesse por bem.
“Na sequência da emissão da Declaração de Situação Contributiva no estado ‘Não Regularizado’, em 24/05/2019, cumpre informar que a mesma inclui o período de 06/2004, 12/2005 e de 03 a 06/2007 e que os mesmos não se encontram em execução fiscal.
Nos termos do artigo 187.o da Lei n.o 110/2009, de 16 de setembro, nas suas redações atuais, a obrigação do pagamento das contribuições prescreve no prazo de 5 anos, salvo pela ocorrência de qualquer ato interruptivo.
No entanto, e uma vez que na qualidade de Trabalhador Independente, a inexistência de obrigação contributiva dá lugar à ausência de histórico de remunerações, fica V. Exa. notificado(a), de acordo os artigos n.os 121 e 122 do Código do Procedimento Administrativo, para no prazo de 10 dias dizer o que se lhe oferecer sobre o assunto”.
Respondeu que o texto recebido era suficientemente conclusivo, isto é, que no mínimo as dívidas já tinham prescrito tal como informavam e mais solicitava que fizessem o obséquio de emitir a certidão já requerida. Recebeu como resposta que nada mais tinham a esclarecer e que respondesse ao ofício anterior, no qual os serviços da Segurança Social informavam que tinha uma dívida, mas já prescrita. Voltou então a enviar nova resposta identificando-se com o próprio texto recebido da Segurança Social.
Desde então, requereu nova certidão, tendo, durante dois dias, a situação no portal informado que estava em análise. Recebeu então a certidão, declarando que… a cidadã estava em dívida perante a Segurança Social no valor de €984,81.
Desesperada, a cidadã recorreu aos serviços telefónicos. No final de uma espera de mais de 15 minutos foi aconselhada a pagar se tinha urgência, porque a atualização da base de dados face ao reconhecimento de que a dívida tinha prescrito ia demorar umas duas semanas.
Rendida, decidiu liquidar.
No minuto seguinte voltou à Segurança Social Direta, requereu nova certidão, julgando poder ter a emissão de seguida. Enganou-se. Foi informada de que o pedido ficava em análise. Assim está há três semanas, depois de ter iniciado o percurso com um pedido de “Certidão de não dívida” que o Estado português reconhece não existir, mas que no portal declara existir. Agora, o Estado está na posse do valor indevido que recebeu por uma dívida que não existe e que vai ter de devolver.
Emitir a declaração é que continua por enquanto uma miragem, empatando a vida da cidadã.
Este é o retrato do que foi feito na degradação alargada nos últimos anos a largos setores do Estado e a partes da sua administração pública, a mesma que oferece 100 milhões de euros a um privado que realiza uma feira de empresas de novas tecnologias (Web Summit) – certames que por todo o mundo são custeados por privados -, mas não tem recursos para investir em software da Segurança Social que reflita instantaneamente a situação efetiva de um cidadão perante a administração.
E daqui decorrem algumas ilações.
Faz agora um ano, na apresentação do programa de modernização administrativa Simplex +, em Lisboa, o primeiro-ministro, na presença de um conhecido ilusionista, aludiu à sua presença com as seguintes palavras: “Este ano não trouxe nenhuma vaca voadora, mas vou levar um cartão do Luís de Matos para o ministro das Finanças, que no fundo é bastante simples, é descongelamento aqui, depois cativação ali e, no fim, as contas batem certas”, gracejou.
“Descongelamento aqui, cativação ali”: eis o programa de governo destes quatro anos.
Brincadeira com coisas sérias e um monumental embuste.
As palavras neste governo cobrem o “soft fanatismo” da indiferença face à situação indefesa dos cidadãos perante o seu concreto problema, que surge embrulhado na generalização e nas grandes parangonas.
Não é assim que se responde ao dia–a-dia de pesadelo dos portugueses, com generalidades, abstrações e a intervenção na superficialidade dos problemas.
Jurista
Escreve quinzenalmente