Neste mundo em que vivemos, o Estado está por todo o lado sob as mais variadas formas e, a quem viva aqui, é quase impossível escapar-lhe.
A forma mais frequente de relacionamento com o Estado são os impostos, mas muitas pessoas cedo ou tarde necessitam de uma licença para alguma coisa, têm uma coima para pagar, são destinatárias de um ato administrativo qualquer, às vezes de exclusão de um concurso de recrutamento para a administração pública, por não terem os olhos da cor requerida…
Assim sendo, a justiça administrativa e fiscal é uma questão maior da cidadania. O seu bom funcionamento seria essencial; a sua ineficiência ou demora, fatal aos direitos dos cidadãos.
Diz-nos o artigo 2.o do Código de Processo nos Tribunais Administrativos que (Tutela jurisdicional efetiva) “1 – O princípio da tutela jurisdicional efetiva compreende o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, cada pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar e de obter as providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, destinadas a assegurar o efeito útil da decisão. 2 – A todo o direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais administrativos”.
Se o legislador se tivesse esforçado por pôr em letra de forma o exato contrário daquilo que acontece nos tribunais administrativos, não teria conseguido melhor: são excruciantemente lentos, formalistas, ineficazes, e os respetivos juízes mais parece andarem com uma candeia à procura de razões para denegar aos cidadãos a apreciação do mérito das suas causas.
Pior do que os tribunais administrativos só os tribunais fiscais, que é como se não existissem: não julgam e, quando julgam, dizem coisas ininteligíveis e ao arrepio da lógica mais elementar.
Em suma, os cidadãos ficam totalmente desprotegidos perante o Estado, mais parecendo que os juízes incumbidos de julgar julgam ser advogados do Estado, que é quem efetivamente lhes paga.
Tenho-me defrontado vezes sem conta na minha vida profissional com esta desgraça que nos caiu em cima, e confesso que, ao cabo de 37 anos de exercício da profissão de advogado – e, para mal dos meus pecados, a pessoa que pôs em vigor a reforma de 2004, que visava revolucionar o funcionamento dos tribunais administrativos –, já não sei o que hei de dizer aos clientes que têm o azar de ter um pleito com o Estado.
Sei que não se pode tomar a árvore pela floresta, mas não posso ficar imune aos exemplos numerosos que me passam pelas mãos. Num caso que trato desde os anos 80 (!) e que diz respeito a um cidadão que, em 1975, tinha uma herdade no Alentejo, continuo em tribunal e na 1.a instância a pleitear a obtenção de uma indemnização minimamente justa e conforme com a lei. Quarenta e três anos depois…
O cidadão em questão era, à época, um homem na casa dos 40. Hoje é um nonagenário. A indemnização, pelo andar da carruagem, há de aproveitar aos herdeiros.
Às vezes calha que a absurda morosidade se vira contra o Estado: um cidadão estrangeiro, um senhor idoso, que teria tido de pagar mais-valias, impugnou o montante e estava muito preocupado com o facto de um dia poder vir a ter de vender a sua casa para pagar o imposto. Como não havia penhora ou garantia, disse-lhe que vivesse em paz: muito mais cedo morreria do que o processo chegaria ao fim… É nisto que estamos.
Quando as coisas são assim e não se vê maneira de as curar, mais vale mudar de vez. Tenho propugnado que se acabe com os tribunais administrativos e já. Mais vale. Soluções há várias, mas nenhuma passa por corrigir ou empreender a tarefa impossível de melhorar o que existe. A única solução para este caso patológico é a de acabar com os tribunais administrativos e transformá-los em instância especializada dos tribunais comuns, com juízes comuns, e sujeita à jurisdição do Supremo Tribunal de Justiça.
Existe a presunção de que o Estado é uma pessoa de bem, cuja atuação se pauta pela procura do bem comum. Infelizmente, o Estado é feito de pessoas, umas preguiçosas, outras desleixadas, muitas mal-intencionadas e que adoram abusar do seu poder. O pior dos tribunais administrativos é dar a estas pessoas e às suas atuações delinquentes uma permanente franquia de comportamento que consiste nisto: “Façam o que fizerem, não serão sancionadas pelos tribunais, pelo menos em tempo útil”.
Pode uma sociedade conviver permanente e duradouramente com isto? Poder, pode, mas não é uma sociedade livre e democrática. Que qualidade pode ter uma democracia cujo Estado tem livre passe para o abuso dos direitos dos cidadãos?
A terminar, não posso deixar de contar o seguinte: um cidadão português foi sujeito a imposto na Bélgica; reclamou, a reclamação foi desatendida e propôs ação judicial de anulação do ato em abril deste ano. O julgamento está marcado para 6 de setembro, em Bruxelas. Cinco mesinhos…. Este, garantidamente, não morre antes de o processo chegar ao fim.
*Ex-secretário de Estado da Justiça Subscritor do “Manifesto: por uma Democracia de Qualidade”