“Baixou-se para ver a criança e o pai deu-lhe uma cabeçada”

“Baixou-se para ver a criança e o pai deu-lhe uma cabeçada”


Os casos de violência contra profissionais de saúde são conhecidos nas instituições, mas têm faltado estratégias de prevenção. Centros de saúde da Amadora e Hospital Amadora-Sintra vão testar medidas para prevenir conflitos. Ideias, propostas pelos profissionais, incluem melhorias no atendimento, envolver a população e criar mecanismos que protejam quem sofre agressões no local de trabalho…


Como se define a violência contra profissionais de saúde? A pergunta de Abel Carreira, da Direção-Geral da Qualificação dos Trabalhadores em Funções Públicas (INA), não fica muito tempo no ar. Na sala de reuniões do Centro de Saúde da Amadora, o grupo de enfermeiros, médicos, assistentes sociais e administrativos conhece bem o problema.

Foram convidados para pensar em soluções, mas primeiro há que perceber o fenómeno, o que está a montante, como reagem. “Os utentes respondem-nos muitas vezes que eles é que nos pagam o ordenado. É como um exercício de poder. Começa muitas vezes numa desconsideração”, responde uma das participantes.

Do balcão de atendimento para o gabinete de consulta, as histórias são comuns: insultos, pressões para um atendimento imediato ou mais rápido, pessoas que entram porta dentro sem se fazer anunciar, o sentimento de que estão encurralados e que faltam barreiras de segurança e, no extremo, ameaças e agressões que levam por vezes a perguntar como é possível manter uma relação de confiança quando esse elo se quebra uma e outra vez em ofensas e ameaças.

Uma administrativa relata o dia em que um doente se atirou a ela no balcão e lhe arrancou os óculos da cara. Outro ameaçou uma médica que, se tivesse sido um homem a falar com ele, o tinha atirado pela janela. Ouvem que lhes cortam os pneus ou lhes fazem uma “espera”. O desgaste torna-se maior, mesmo quando existe a noção de que a incapacidade para responder mais rápido e a falta de meios ou condições mais confortáveis alimentam conflitos. Mas nem sempre, e nada justifica partir para a violência. “A certa altura temos de tentar explicar que somos parte da solução e não o problema, mas nem sempre conseguimos”.

Uma forma diferente de pensar os problemas A ação que os junta numa manhã de trabalho diferente está a dar os primeiros passos na administração pública e é uma estreia no SNS: dá pelo nome de “oficina de cocriação de projetos experimentais de inovação” e faz parte de um programa lançado no ano passado de incentivos à inovação na gestão pública, uma iniciativa do Ministério da Presidência e Modernização Administrativa e do Ministério das Finanças.

A ideia é identificar problemas que afetem quem trabalha no Estado e criar soluções de baixo para cima que possam ser experimentadas no imediato. Na portaria 186/2018, que estabeleceu o Sistema de Incentivos à Inovação na Gestão Pública (SIIGeP) vai fazer um ano em junho, está até previsto um mecanismo de “direito ao desafio” que permite testar medidas que, à partida, poderiam ser travadas pela lei, suspendendo temporariamente os regimes legais vigentes.

A proposta de aproveitar a oportunidade para tentar mudar a forma como se lida com a violência contra os profissionais no SNS partiu da secretária de Estado da Saúde, Raquel Duarte, que na última semana acompanhou o lançamento dos trabalhos no terreno. Foram selecionados o Agrupamento de Centros de Saúde da Amadora e o Hospital Amadora- -Sintra para dar o pontapé de saída – das zonas do país com mais casos reportados. O objetivo é contrariar os números e perceber como reagir melhor perante outros tantos casos que poderão estar até por notificar – pelo menos é essa a sensação, que têm os profissionais, de que muitos incidentes não são sequer comunicados, também porque não há feedback da Direção-Geral da Saúde (DGS) nem existem muitos mecanismos de apoio. A Organização Mundial da Saúde estima que metade dos profissionais passem por situações de violência ao longo da carreira, mais de um terço por agressões físicas. Os números nacionais são estes: no primeiro trimestre do ano foram reportados à DGS 383 casos de violência contra profissionais de saúde. São quatro por dia, o dobro da média diária no ano passado, que já tinha registado um recorde de 953 casos. Embora também haja violência e assédio moral entre colegas, na maioria das vezes os insultos, agressões e ameaças até de morte partem de utentes, familiares e acompanhantes.

Depois de três dias de debate e planeamento na semana passada, as medidas que vão ganhar forma durante os próximos meses foram apresentadas esta terça-feira no Ministério da Saúde, com Raquel Duarte a anunciar à sala a expetativa de vir a replicar as iniciativas que se mostrem eficazes noutros pontos do país.

No Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) da Amadora vão ser implementados dois projetos experimentais – um vai decorrer no Centro de Saúde da Brandoa e o outro na Unidade de Saúde Familiar (USF) Amato Lusitano. No Hospital Amadora-Sintra foram mobilizados profissionais da urgência, o serviço onde há mais conflitos.

Para Ana Isabel Silva, diretora executiva do ACES, a iniciativa chega em boa hora. “Todos os profissionais se mostraram muito disponíveis para colaborar porque sentem que é preciso fazer algo”, diz. No último ano e meio, desde que está à frente do agrupamento, além do caso da administrativa agredida no balcão já foi confrontada com episódios de insultos e agressões em consulta e em visitas domiciliárias. “Tivemos o caso de um profissional que foi impedido de fazer o domicílio. Foi encostado contra a porta”.

A responsável acredita que o projeto não vai estigmatizar a população da Amadora, pois a maioria dos atendimentos corre bem, mas sim reconhecer que o problema existe. “Há muitas causas. Somos um ACES com 50 mil utentes sem médico de família, é natural que as pessoas fiquem revoltadas. Por outro lado, as estruturas dos próprios edifícios dificultam o dia-a-dia, a maioria são prédios antigos. Mas tem de haver bom senso. Os profissionais fazem o melhor que conseguem, mas também têm de poder dizer não: há pedidos que vão contra os seus deveres deontológicos ou estão num nível de saturação e cansaço que não conseguem fazer mais do que aquilo que fazem”.

O novo concurso para colocação de médicos de família tem 20 vagas nos centros de saúde da Amadora. Se todas fossem preenchidas, o que não tem acontecido nos últimos anos, e se não houvesse saídas para a reforma, daria para reduzir a lista de doentes sem médico para metade. Assim, deverá continuar a haver um número elevado de doentes sem médico.

Na urgência do Amadora-Sintra, o congestionamento, causado também pelas dificuldades de acesso aos centros de saúde e os casos de “falsas urgências” – 56% dos doentes recebem pulseiras com prioridade verde, azul ou branca –, acaba também por ser a causa de muitos conflitos. Helena Silva, enfermeira que representa a equipa envolvida na oficina de trabalho, espera que o projeto traga melhorias no ambiente e menos atritos. “É uma urgência sobrelotada em que estes episódios acabam por ser frequentes. Se considerarmos só a violência física, estamos a falar de um caso a cada dois, três dias. A violência verbal é diária”. Os casos têm sido motivo de baixa de alguns profissionais e outros precisam de apoio psicológico. Um profissional ficou com fraturas no nariz depois de ser agredido por um pai a quem tinha pedido para ir ao balcão tratar da ficha da criança. “Baixou-se para ver a criança e o pai deu-lhe uma cabeçada”.

Noutra ocasião, um familiar que não concordou com a cor da triagem atribuída a um doente deu um murro na boca da enfermeira. Partiu-lhe um dente. Há historial de ameaças com armas brancas e de fogo. “É um problema que tem a ver também com as expetativas das pessoas. Para as pessoas, a sua situação é, muitas vezes, a mais urgente de todas. Mesmo quando têm uma dor há oito dias, chegam e querem ser logo atendidas. Se lhe dissermos que não é urgente, que têm uma pulseira verde, não aceitam. Se utilizarmos os serviços de saúde de forma correta, haverá uma melhor resposta para todos e estes problemas não surgem tanto”. Helena Silva recusa também reforçar estereótipos: as reações agressivas são transversais a todos os grupos sociais e etnias.

De “botões de pânico” a arte urbana: proteger profissionais e envolver comunidade Na apresentação dos projetos, as equipas puseram a tónica em medidas “realistas”, mas que vão exigir algum investimento. Na USF Amato Lusitano, uma das queixas habituais dos utentes é a dificuldade que têm para que alguém lhes atenda o telefone. Há apenas duas linhas e não é possível ter chamadas em espera. A instalação de uma nova central telefónica é, por isso, uma das medidas, assim como a instalação de ar condicionado em todos os gabinetes e salas de espera. “Já tivemos situações em que as mães têm de tirar as camisolas aos bebés por causa do calor”, exemplificou a enfermeira Paula Dantas na apresentação do projeto Violência Zero.

A reorganização da unidade, limitando a circulação junto aos gabinetes dos médicos, com o secretariado mais perto da entrada, é outra das propostas. Se estas são medidas que poderão contribuir para baixar os níveis de tensão e as oportunidades de confronto, acreditam que também é preciso proteger mais os profissionais agredidos e propõem que seja equacionada a figura de “vítima de violência profissional” ou, pelo menos, começar a debater esse estatuto. O projeto incluirá também ações de formação que envolvam os seguranças, que acabam por estar na linha da frente do acolhimento.

No Centro de Saúde da Brandoa, o projeto também tem medidas para prevenir o fenómeno e melhorar a resposta aos casos de violência. Renovar a sinalética para que os utentes percebam onde devem dirigir-se, música ambiente, ecrãs com informação útil para tornar os tempos de espera menos aborrecidos – e menos focados naquilo que os secretários estão a fazer e em quem estão a chamar – e até tornar a unidade mais convidativa, com murais de arte urbana como os que existem espalhados pela Amadora, são algumas das propostas.

Para lidar com os casos de violência será criada uma equipa de intervenção rápida e são propostos mecanismos de “botão de pânico” e palavras-chave que permitam pedir ajuda à PSP para uma resposta mais rápida. O projeto propõe ainda a sensibilização dos utentes com “dias temáticos”, que aproximem a comunidade dos profissionais.

No Amadora-Sintra, a estratégia também assenta no envolvimento da população, com convites aos líderes das diferentes comunidades para conhecerem o hospital e campanhas que sensibilizem os utentes para o impacto que a violência pode ter na qualidade dos cuidados. Propõem também a criação de mecanismos de alerta logo no momento da triagem e que os seguranças que trabalham no hospital passem a ter formação para conhecer melhor os circuitos dentro do hospital, e que seja tido em conta o perfil adequado ao trabalho em saúde na hora do recrutamento.

Na resposta aos casos de violência, desafiam o conselho de administração a criar um grupo multidisciplinar que dê apoio a quem sofre agressões, psicológico mas também jurídico. E defendem que deve ser possível participar agressões no posto da PSP que funciona dentro do hospital, o que hoje não está previsto na articulação com a polícia.

Abel Carreira, que liderou as sessões de trabalho, diz que o mais marcante foi perceber até que ponto havia necessidade de falar e vontade de contribuir para soluções. “Está documentado de uma forma muito clara que a violência contra os profissionais de saúde tem reflexo não só na qualidade de vida dos profissionais como na qualidade dos serviços prestados. É uma vantagem para todos que se implementem medidas”. Reforçar os laços de empatia e confiança dentro das instituições será fundamental para prevenir o fenómeno, mas também é preciso, como ouviu dos participantes, um maior acompanhamento de quem sofre agressões. “Há pessoas que ficam logo abaladas, outras podem só ter efeitos mais tarde, mas é importante que sintam que existe retaguarda e formas de serem ouvidas e apoiadas. Há a necessidade de dar uma importância real a este fenómeno”.