“Durante muito tempo, me vi como um poeta da palavra escrita, da linguagem aprisionada em seu "sarcófago impresso", pra usar uma expressão provocativa usada pelo artista plástico, músico Murray Shafer. Mas sempre tive um fascínio imenso pela poesia experimental, pela arte experimental em suas multifárias vertentes – na música, no teatro, na dança, no cinema. A primeira vez que ouvi música concreta foi no início da década de 80 do século passado, na casa do professor Benedito Nunes; ele me apresentou o LP do Pierre Henry, denominado "O Véu de Orfeu”, em que este gravou os cantos órficos do século VII A.C, introduzindo ruídos, distorção através de um gravador magnético.
Passaram-se mais de 20 anos desde a publicação do meu primeiro livro "Nada ou Quase uma Arte". Aos 51 anos, ou seja, há quatro anos atrás, resolvi molhar a bunda, como se diz, e o corpo inteiro na poesia sonora, deixei-me afetar e atravessar-me por ela. Então, comecei verouvirpesquisar mais sobre poesia sonora. Até porque, concordando com a afirmação do poeta Emerson, muitas vezes citada por Borges, a poesia só brota da poesia". Isto serve também para a poesia sonora. Estou ainda nos meus exercícios de habitação poética com a poesia sonora.”
As palavras acima são de Herbert Emmanuel Valente e nada melhor do que elas para nos introduzir aqui em sua experiência naquilo que ele mesmo chama de poesia sonora, embora a sonoridade seja um aspecto fundamental de todo fenômeno poético verbal, independente do meio em que se propague, presente mesmo naquele “sarcófago impresso” a que ao próprio Herbert se refere ao citar Murray Shafer, na palavra impressa, onde a sonoridade também se forma de maneira silenciosa na mente do leitor.
Mas neste caso é justo este recorte pelo viés do sonoro por tratar-se de uma experiência poética em que este aspecto ganha uma grande relevância, uma espécie de planalto em uma topografia da linguagem em que outros acidentes geopoéticos também estão presentes.
E quem habita esta topografia a que me refiro, além da própria poesia, que corpos transitam por esta região de caminhos que se bifurcam, convergem, se afastam, entrelaçam-se e, por vezes, apagam entre si suas fronteiras? O grupo Tatamirô, palavra tupi-nagô que evoca um espírito da floresta, composto pelo próprio Herbert Emanuel Valente, pesquisa multimidia e vocalização; Adriana Abreu, vocalização e direção de cena; Thamires Werneck, didgeridoo e morchand; Paulo Rocha, iluminação; o grupo é sediado em Macapá, região extremo norte da Amazônia brasileira.
No palco esta trupe, esta tribo, entretece uma floresta de signos que se emaranham em suas diversas formas de linguagem a gerar uma multiplicidade de significantes e significados. Significados e significantes estes que, por sua vez, emaranham-se entre si em um amálgama verbal, vocal, visual, gestual, corporal, musical sonoro, entrando e saindo continuamente de territórios onde cada um deles permanece intacto mas nenhum torna-se hegemônico ao conjunto, numa deshierarquização de campos de expressão em que as fronteiras entre estes territórios da linguagem são continuamente apagadas a ponto de criar um trânsito livre entre os países imaginários da palavra verbal, do teatro, da dança, do canto falado, da poesia oral e da música.
Trânsito livre entre as fronteiras, liberdade e deshierarquização, o que às vezes a história sonha a arte por um instante realiza.
A maneira como os Tatamirô encontraram para isso foi criando um conjunto singular de pluralidades, em que Adriana Abreu modula a fala e vocaliza poemas e trechos de poemas associados a uma performance e a uma mise-en-scène quase-dança, quase-teatro; Thamires Werneck empunha de forma majestosa e hierática o seu didgeridoo, instrumento de origem aborígene australiana que nos transporta de imediato ao que ainda pulsa de ancestralidade em nós, em contraponto à parafernália eletrônica manuseada por Herbert Emmanuel Valente, fruto de sua pesquisa séria e longa com texturas sonoras, ruídos, atmosferas.
Pesquisa que vai ao encontro do conceito de ruidismo, proposto por Luigi Russolo no manifesto de 1913 “A Arte dos Ruídos”, em que ele menciona seis famílias de ruídos, que é interessante citar aqui: 1. Estrondos, trovões, explosões, rajadas de sons, quedas, ribombos; 2. Silvos, sibilos, sopros; 3. Cochichos, murmúrios, sussurros, cicios, borbotões; 4. Rangidos, estalidos, roçaduras, zumbidos, crepitações, fricções; 5. Ruídos obtidos com percussão sobre metais, madeiras, peles, pedras, terracotas, etc; 6. Vozes de animais e de homens, gritos, berros, gemidos, bramidos, risadas, estertores, soluços.
Segundo Russolo, ao combinar-se esses ruídos todos, das formas mais extravagentes e exdrúxulas, a linguagem poética torna-se tão irregular quanto a vida. Pois é bom sublinhar que no caso deste trabalho do grupo Tatamirô não se trata de um simples caso de acompanhamento musical do poema nem de uma instalação de uma parafernália espetaculosa para suprir uma deficiência poética verbal, mas da incorporação, entre outros procedimentos, de distorções, sobreposição de vozes, gravadas e ao vivo, que, ao contrário, articulam a potencialização de uma riqueza verbal já existente e em diálogo com outras linguagens que a complementam e também se contrapõem a ela.
O repertório híbrido, como a própria experiência proposta pelo recital Palavr(arma)dura, é formado em parte por consistentes poemas de Herbert Emmanuel Valente como podemos demonstrar no poema intitulado Vasko Popa:
os ossos sobre a mesa
o real mais embaixo
outubro palavra presa
ao pó – órfico Grafo
ouço agora tua filha mais doce
grávida de osso a osso
não-ovo não-voo mas fosso
a encher-se de voz e de lodo
para lavar as patas de seu lobo
e apagar os rastros do caminho
um poema se faz sozinho
e com ele também o caminho
que se quer atravessar:
Vasko Popa é, talvez, um lugar
A este e outros poemas de Herbert, juntam-se trechos de autores que vão de Bashô a Rimbaud, de Mallarmé a Maiakóviski, de Orides Fontela a Pablo Neruda, incluindo também neste balaio, junto ao que se convencionou chamar de alta cultura, fragmentos da música popular. Um processo de justaposição que também remete à colagem nas artes plásticas e à montagem no cinema.
Um processo de criação minuciosamente construtivista, mas onde a pulsação vital e a pungência se projetam para além do formalismo e coloca-se também em tensão participativa em relação à realidade brasileira, hoje gravemente adoecida pelos vermes do autoritarismo, da exclusão, do fundamentalismo religioso e seu projeto inescrupuloso de imbecilização da população, do antiintelectualismo, enfim, da barbárie dos neos: neopentecostais, neoliberais, neofascistas.
Como diz Oswald de Andrade no Manifesto Antropofágico, de 1924, que, neste caso, por conta do brutal momento de retrocesso no Brasil pode ser citado aqui como se tivesse sido escrito hoje “Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.”
Ancestralidade em diálogo com tecnologia digital reúnem nesse rito-recital os elementos sonoros, cênicos, teatrais, musicais, orais e verbais, em que a tribo Tatamirô faz o ouvinte-leitor adentrar em uma aventura estética em que este passa a pisar uma paisagem limite nas regiões do quase: quase-teatro, quase-dança, quase-música, quase-poesia oral, quase-escrita, quase-canto, ou quem sabe para-um-pouco-além-de-tudo-isso, em um quase-rito onde os tempos e os espaços são abolidos e se fundem na duração de um único e múltiplo poema que a cada instante se transforma como o poeta Herbert nos mostra:
a pele que habito
despe-se das outras que já tive
ofídico ofício
trocar de pele
carece a todo poeta
que se preze
senão perece:
cobra sobre a própria cova