Maria Elvira Callapez. “Nunca  vai deixar de haver plástico”

Maria Elvira Callapez. “Nunca vai deixar de haver plástico”


Lisboa recebe a partir de hoje um congresso dedicado ao plástico. O i falou com a organizadora, Maria Elvira Callapez, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que não tem dúvidas: os plásticos, hoje, são um problema por falta de civismo das pessoas.


Maria Elvira Callapez é especialista em História dos Plásticos e investigadora principal na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL). Assume-se como uma defensora dos plásticos e culpa as pessoas pela proliferação do material na natureza: “As pessoas é que pegam na palhinha e põem no chão, nos rios, nas ruas”. É preciso uma mudança de mentalidades, defende, até porque vivemos na “Idade do Plástico” e porque “nunca vai deixar de haver plástico”. Coloca as origens do plástico no século XIX e desvenda como teve – ao contrário da fama que tem hoje – uma preocupação com a natureza na sua base: numa altura em que se matavam os elefantes para aproveitar o marfim dos dentes para diversos usos, incluindo para fazer bolas de bilhar, houve quem se lembrasse de lançar um concurso para substituir o marfim por um material sintético que resultasse numa bola de bilhar com qualidade. E assim nasceu o plástico.

É a organizadora do Plastics Heritage – History, Limits and Possibilities, que acontece entre hoje e sexta-feira. Qual o objetivo?

É um congresso sobre a história dos plásticos, a herança dos plásticos e todo o património dos plásticos, com várias abordagens e em várias vertentes: não só a componente histórica estará presente, mas a componente artística, a componente da conservação dos plásticos, e também a questão ambiental. É o primeir congresso do género em Portugal e reúne uma série de académicos bastante prestigiados. Concentra todos os experts da área, desde historiadores, a industriais, a designers, a conservadores, etc.. Portanto, é um tratamento dos plásticos muito diferente daquilo a que estamos habituados, porque é uma articulação entre os vários olhares sobre os plásticos. Convidei, aliás, vários empresários com muita representatividade no país, que lá estarão porque há uma aceitação cada vez maior por parte da indústria dos académicos que fazem a história dos plásticos. E agora mais, com estas campanhas agressivas que há contra o plástico…

É possível um mundo sem plástico?

Não, nunca vai deixar de haver plástico. Isso agora é uma moda, as pessoas estão a fazer campanhas muitas vezes desinformadas, mas isso nunca vai acontecer. A questão é que pode usar-se, de facto, os plásticos, mas de uma forma responsável, adequada e informada. Agora, as pessoas é que pegam na palhinha e põem no chão, nos rios, nas ruas, nas próprias casa não têm o cuidado de fazer a separação do lixo… Enfim, não têm educação e as pessoas é que têm de ser muitíssimo educadas. É como as beatas, é falta de educação.

Pode dizer-se que é uma defensora do plástico?

Sou, porque o plástico não é percebido e por isso é mal-amado. Estou muito zangada – e garanto-lhe que a indústria não me paga nem nada disso, eu é que faço investigação sobre isto há muitos anos – porque vejo às vezes algumas pessoas com responsabilidade a dizerem coisas sobre os plásticos, a desinformar, sem saberem o que são os plásticos. Vi uma pessoa – não quero dizer quem – que acho que deveria ter algum cuidado, a dizer ‘abaixo o plástico, os meninos devem começar a usar garrafinhas de vidro para irem para os piqueniques’. É absolutamente disparatado dizer isto, porque se os meninos levam as garrafinhas de vidro para os piqueniques, imagine se partirem as garrafas – cortam-se e magoam-se, etc..

Porquê estudar a história do plástico?

A minha professora Paulina Mata desafiou-me a fazer a história da indústria dos plásticos em Portugal na tese de licenciatura, e eu aceitei o desafio e comecei então a estudar os polímeros [macromoléculas]. Depois, fiz a tese do mestrado em História e Filosofia da Ciência e da Tecnologia, cujo tema é exatamente a indústria dos plásticos. Mais tarde, na tese de doutoramento, debrucei-me sobre a CIRES – Companhia Industrial de Resinas Sintéticas, com um estudo de caso sobre o PVC. Depois, fui fazer o pós-doutoramento em Berkeley, na Califórnia, onde investiguei a existência de evidências científicas sobre os riscos do plástico para a saúde humana. Estudei em específico os ftalatos, que são aditivos que se juntam aos plásticos – para dar cor ou suavizar -, para ver se era ou não mortais para as pessoas. E concluí que não, não há qualquer evidência científica. Entretanto, têm vindo a fazer-se algumas experiências em ratinhos e viu-se que, de facto, alguns produtos causavam alguns problemas no aparelho reprodutor. Mas aos humanos, causa zero. Continua-se a estudar isso e inclusive a União Europeia proibiu alguns ftalatos, que se acredita que poderiam causar alguns danos, por isso a indústria não usa e é tudo seguro.

O que é, então, o plástico?

O centenário do primeiro plástico já foi em 2007, estava eu nos EUA a fazer o pós-doutoramento. Muitas pessoas não sabem sequer o que é o primeiro plástico, que é a baquelite – e, aliás, vamos ter no congresso o bisneto do homem que o inventou, Leo Hendrik Baekeland. O plástico é uma macromolécula, um polímero, que é constituído por várias unidades. E então o plástico começa exatamente por ser sintetizado pelo Baekeland, através de uma reação química entre duas substâncias – o fenol e o formaldeído -, que produz uma molécula grande chamada baquelite com características muito especiais, em particular o facto de ser um polímero duro. Na altura, acabou por servir a indústria elétrica, por exemplo, e a indústria da rádio – os rádios antigos, muito bonitos, eram feitos em baquelite. Isto é que é um plástico – ao ponto de, hoje, as pessoas mais velhas distinguirem baquelite de outro plástico, não se referem à baquelite usando a palavra plástico, por perceberem que a baquelite é o primeiro plástico sintetizado pelo homem, no laboratório.

Quando começa a história do plástico?

No século XIX, lá para a década de 60, matavam-se os elefantes nos EUA e usavam-se os dentes de marfim para fazer as bolas de bilhar. E então lançou-se um concurso para que as bolas em marfim fossem substituídas por um material sintético. O investigador inglês Alexandre Parks começou a fazer estudos e começaram a surgir produtos que eram diferentes dos tradicionais. Começaram a moldá-los, a usar técnicas como as que usavam com os produtos tradicionais e começaram a obter resultados. Esse material foi aplicado nas bolas, em cabos de facas, travessões, botões de punho, colarinhos, que estiveram expostos na Grande Exposição de 1862, em Londres. E a verdade é que esses produtos começaram a ser produtos de luxo e a ser admirados e a ter impacto na indústria e no consumo doméstico, mas tinham um problema: eram inflamáveis, amareleciam com o sol e explodiam por causa do nitrato de celulose – conhecido na gíria como ‘algodão pólvora’. Entretanto, o produto foi sendo melhorado, até que chega o Baeckland que consegue sintetizar o primeiro plástico – a baquelite -, no laboratório, em 1907. E em 1910, consegue-se a produção em grande escala, que teve grande utilidade: o primeiro cabo transatlântico foi feito já de baquelite, tal como a rádio. Depois, no período interguerras, a Alemanha, por exemplo, que não podia importar produtos como a borracha, começou a desenvolver os sintéticos, o que levou a um boom nos anos 60, quando nasce a Tupperware, a Barbie e outras.

E em Portugal, o plástico começou a ser usado muito mais tarde?

Não, não surge muito depois. Mas há uma história por trás: antes da baquelite já havia os celuloides, que já eram fabricados pela fábrica Hércules e outras tantas cá, que já não existem. E em 1927, quando a Nobre & Silva, em Leiria, é fundada, começa a produzir alpercatas de pano com solas de borracha, mas depois a indústria percebeu que em Espanha já havia alguns sintéticos e começou a tentar imitar [nas alpercatas]. Antes, já a Sociedade Industrial de Produtos elétricos (SIPE) tinha começado a produzir a baquelite para substituir a porcelana na indústria elétrica, que era caríssima. O plástico, por fim, começa a ser produzido pela SIPE, que já não existe, em 1935, e quase em simultâneo, pela Nobre & Silva, que também já não existe. Depois, há uma grande proliferação da indústria dos plásticos em Leiria.

E a indústria cresceu e disseminou-se e, hoje, a verdade é que temos um problema com o plástico…

Temos um problema com o plástico, sim. O plástico é uma macromolécula que existe para a eternidade, é um material ubíquo, está em todo o lado, é versátil, serve muitos fins, tem muitas funções, tem características únicas, propriedades únicas, incomuns, é melhor que os materiais tradicionais – como o aço, por exemplo, ao ponto de os ter destronado quando apareceram. Hoje falamos em Idade do Plástico ou Era do Plástico porque os plásticos passaram a dominar a sociedade, o consumo e os materiais tradicionais foram arredados do grande consumo. O plástico tem a sua identidade própria, tem uma existência diferente dos outros materiais, conseguiu ultrapassá-los em inúmeros campos – no campo elétrico, na construção civil, na medicina, em que as válvulas colocadas nos corações e os tubos que se usam nas operações, por exemplo, são em plástico. Portanto, é mesmo muito difícil o plástico desaparecer, mas sem dúvida que é uma preocupação, que vai talvez ser superada depois de as pessoas mudarem comportamentos. Neste momento, as próprias indústrias estão a desenvolver tecnologias que permitem usar outras matérias primas, material biodegradável, para resolver estes problemas no ecossistema. Parece-me que, com uma vontade conjunta, nós podemos ter melhores plásticos, mais sustentáveis, inovadores, que as pessoas usem de forma responsável e reciclem.

Então para resolver o problema é preciso mais educação e sensibilização para a reciclagem, por exemplo?

Sim, claro. Os meninos na escola têm lições sobre como tratar estes materiais e vão para casa ensinar os pais, mas os pais não valorizam e não são recetivos à mensagem. Isso é exemplificativo da mentalidade das pessoas e isto vai durar algum tempo ainda. Mas espero que a mensagem da Greta Thunberg seja uma onda que não páre, porque é preciso consciencializar as pessoas.

Fala em reciclagem, mas nem todos os plásticos são recicláveis, certo?

Tudo o que é termoendurecível não é reciclável, mas atualmente não existe praticamente – embora na indústria aeroespacial se esteja a voltar a usar esse tipo de plásticos, a baquelite principalmente, por ser muito resistente. Esses materiais não são recicláveis, sim, mas hoje a grande maioria dos plásticos usados são termoplásticos e os termoplásticos são recicláveis, ou seja, podem ser fundidos e reutilizados. É preciso é que sejam encaminhados para o tratamento devido – e se o fossem nós não tínhamos este problema. As pessoas têm é de ser mais cívicas, não irem em campanhas de alarmismos, estudarem um bocadinho o que é o plástico e verem o plástico noutra perspetiva. Até porque a investigação científica deve muito ao plástico. O plástico é útil e o ambiente pode de facto ser respeitado se as pessoas souberem respeitar a utilização do plástico. É uma questão de mudar mentalidades e comportamentos. 

Em Portugal a reciclagem funciona?

Temos uma legislação rigorosa, porque é que nada funciona? Nada funciona porque o comportamento das pessoas é no sentido do desperdício. No século XX havia muito desperdício, a própria produção era no sentido do desperdício, mas agora no século XXI não é assim, há uma preocupação ambiental e legislações rigorosas…

E a partir de 2020 entra em vigor uma nova legislação, que proíbe os plásticos descartáveis.

Sim. E porque é que há necessidade de legislar e de proibir? Exatamente porque as pessoas têm maus comportamentos, porque o plástico em si não faz mal nenhum a ninguém, o plástico é um corpo inerte, não faz rigorosamente mal nenhum a ninguém. Mas a legislação de proibição já vem dos anos 60, com a Greenpeace. A Greenpeace começou a fazer campanhas, sem razão.

Sem razão porquê?

Porque não tinham evidência científica para culparem os plásticos, eram suposições. Essas campanhas começaram a surgir porque nos EUA, nos anos 60,  começaram a morrer alguns trabalhadores que trabalhavam em fábricas de plástico, nomeadamente de PVC. Desenvolviam uns cancros no fígado e morriam e as pessoas atribuíram isso ao plástico. Depois, a indústria e os médicos juntaram-se e vieram explicar à Greenpeace que não era bem assim: os trabalhadores de facto morreram com aquela doença porque na altura entravam nos reatores – os equipamentos onde se davam as reações químicas para se produzir o PVC – para os limpar, e inspiravam uma substância chamada cloreto de vinila, que é fatal porque é tóxica, e isso foi o que acabou por motivar o cancro e levá-los à morte. Hoje, já ninguém entra no reator para limpar, já existe o reator fechado. Mas uma coisa é certa: o plástico não mata.