Portugal perde a final, mas o rapaz do futuro continua a sua missão

Portugal perde a final, mas o rapaz do futuro continua a sua missão


Conan Osíris teve uma boa prestação na noite de terça e fez vibrar a audiência na Expo Telavive, mas, como tinham previsto as casas de apostas, não irá ouvir-se “Telemóveis” na final. Ainda assim, há quem acredite que Conan arrancou uma vitória moral.


Não bastou uma atuação desta vez irrepreensível, exaltada de fantasia e de despeito, para que Conan Osíris convencesse o voto do público ou do júri do festival Eurovisão da Canção 2019. Portugal falha assim o acesso à final, ficando entre as sete canções eliminadas na noite de terça-feira. E não se pode dizer que o tema português se tenha perdido na tradução. Foi animadora a reação do público na arena da Expo Tel Aviv, que pareceu ceder ao feitiço do músico português de 30 anos. Mas, no fim, o resultado confirmou a previsão das casas de apostas. “Telemóveis” ficou pelo caminho, sendo que dos 17 temas em competição na semifinal 10 prosseguirem, e serão interpretados no sábado, em Israel.

Na competição estavam 41 países, sendo que na final atuam 26. Os países apurados na noite de terça foram a Grécia, a Bielorrússia, a Sérvia, Chipre, a Estónia, a República Checa, a Austrália, a Islândia, São Marino e a Eslovénia. Portugal vê-se pela 9.ª vez afastado da fase final do festival, mas Conan Osíris não se mostrou especialmente abatido com o adeus à Eurovisão. Já se sabe que o rapaz é mais dado a bolos do que ao champanhe, e na conta de Instagram do Festival RTP da Canção, na única reação pública que até agora se conhece, disse aos fãs: “Está tudo bem”.

Se Tiago Miranda – o verdadeiro nome de Conan Osíris – não segurou uma posição na final, segundo o jornalista da Blitz, Mário Rui Vieira, não deixou de aproveitar a viagem a Israel para fazer das suas.  Conta Rui Vieira que, há uns meses, numa conversa informal com o músico, este lhe disse que “estava a ‘estudar’ o conflito israelo-palestiniano e a decidir o que poderia fazer, nas entrelinhas, para chamar à atenção para o problema sem violar as regras hipócritas (palavra minha) da Eurovisão”. Assim, o jornalista chama a atenção para uma combinação de cores na forma como Conan e o seu bailarino, João Reis Moreira, se apresentaram em palco em Tel Aviv. A tese, que não parece assim tão rebuscada, é que o representante português aproveitou a visita de estudo e usou a sua prestação em palco para marcar uma posição, envergando as cores da bandeira da Palestina (vermelho, negro, branco e verde). Roger Waters tinha-lhe dirigido um pedido expresso para que boicotasse a Eurovisão, uma penalidade para a sistemática agressão do Estado de Israel ao povo palestiniano. O hipotético protesto tem permitido ver a indumentária de Conan como um colete de explosivos de efeito retardado. A atuação foi, de resto, marcada por uma expressão mais dura, de rosto fechado, com a voz encostando-se aos graves. “Telemóveis” prestou-se assim a outras interpretações, com os versos “partir o telemóvel/ a tentar ligar para o céu”, a assumirem outro peso, a frustração diante de uma impotência de natureza bem mais séria.

Independentemente daquilo que se possa pensar do fenómeno Conan Osíris, o facto é que Tiago Miranda tem sabido levar o público a buscar um significado nos detalhes, a estar atento para as subtilezas. Gostando-se ou não das canções, o que se lhe reconhece é a dimensão do estômago. Conan é um inexcedível cacófago, capaz de fazer um bolo de contrastes, numa dança entre a harmonia e o caos, entre um ritual de acasalamento tribal e uma prestação sumamente artificiosa. Assim, esta pop atraganada, não está, ao contrário do que se tem dito a meio caminho “entre o fado, a música cigana e a eletrónica ‘chunga’”. Não é um meio caminho mas uma tentação de desfigurar, descoser a bainha dos géneros, uma estética que parece apontar para o estupro sensorial. E isto está em linha com o desmoronar da sensibilidade num tempo em que o constante assédio impede a audiência de estar presente, disponível, livre, plenamente atenta. O próprio nome artístico escolhido por Tiago Miranda, e que se inspira na série pós-apocalítica “Conan, o Rapaz do Futuro”, de Hayao Miyazaki, e no deus da mitologia egípcia que, tendo começado por estar ligado às forças da terra e das plantas, dada a sua popularidade – e à medida que o culto à sua volta foi crescendo, abrangendo todo o território do Egipto -, foi suplantando os outros deuses e enriquecendo-se dos seus atributos. Uma vez mais, apreciando ou não a música, quer se tenha paixão, apenas curiosidade ou mesmo um desdém incontido pelo fenómeno, não há como negar que este artistas se tem sabido valer das ferramentas da pop para confrontar o inane messianismo da época.

Falar da noite de terça-feira como um fracasso é supor que a inoculação do vírus poderia dar-se nas condições mais adversas. Afinal, Conan não é um performer que busque encantar mas sim sacudir, recorrendo para isso a todo o tipo de artifícios. É uma espécie de Frankestein lírico. Pode até argumentar-se que é maior a incompreensão daqueles que aderem apaixonadamente à proposta deste artista do que aqueles que a rechaçam energicamente. E isto porque as novidades que nos traz o rapaz do futuro não têm já a ver com uma combinação de diversas tradições com vista a afirmar um estilo pessoal, muitíssimo extravagante, pois não seria assim tão interessante ver surgir outra divindade no território da pop. O que há de original neste artista é a forma como se aplica em romper com a harmonia, profanar os mitos, elaborar temas que parecem cantar uma civilização que vive dos restos desta, um amanhã que tenha de se olhar através do espelho quebrado do dia de hoje.