Game of Thrones. O final chegou mas o exército de Westeros está agora às portas da realidade

Game of Thrones. O final chegou mas o exército de Westeros está agora às portas da realidade


A “melancolia” de George R. R. Martin por ver a série chegar ao fim e uma petição de mais de um milhão de fãs, irados com o fraco desempenho dos guionistas quando lhes coube inventar o desfecho, deixam aberta a perspetiva de uma guerra, desta vez bem real, pelo trono de Westeros.


Fosse qual fosse o final, o mais dramático seria sempre a ressaca. A deriva em busca de narcóticos secundários para ajudar no desmame. Afinal, milhões terão agora de prosseguir com as suas vidas. Pode levar um bom tempo até que surja outra ficção capaz de um tal apelo, capaz de submergir tão fundo os sentidos de tantos. E os grandes estúdios já há alguns meses que têm produtores e guionistas trancados em sessões intermináveis de brainstorming, conscientes de que o trono deste império da atenção não ficará vago por muito tempo. E o mais provável é que se quebrem os selos e o poder se dilua entre reinos menores. Por agora anda aí, ocioso, um tanto lúgubre e sem saber o que fazer a um ânimo beligerante, um imenso exército que a série de David Benioff e D. B. Weiss soube arrastar para o seu audacioso simulacro. A partir dos livros de George R. R. Martin, a dupla misturou na sua poção televisiva elementos de terror e fantasia, espicaçando o imaginário de milhões. Como tem sido notado, a razão do triunfo desta saga é ter percebido como o mundo moderno vive de eufemismos, as suas metáforas são estéreis, os seus símbolos não inspiram grande coisa. E não é que faltem, no plano global, tensões profundas, lutas de poder, ameaças à democracia e à paz por parte de novas formas de tirania e autoritarismo, mas a dissimulação, aí, é a nota dominante. A Guerra dos Tronos oferece uma grelha interpretativa para as ansiedades atuais, aplicando esse lustre medieval. Num artigo publicado no Estadão, Marcelo Rubens Paiva discute o enredo desta saga em termos de macropolítica, referindo que a crise de governabilidade assenta na perfeição num momento em que as democracias ocidentais se debatem com uma crise de representatividade, em que, face a perigos reais e a lógicas de indução da paranoia, a tirania e o autoritarismo voltam a causar atração quando as democracias parecem definhar, com as suas instituições engolidas pela burocracia e a corrupção. São, na verdade, infindáveis as linhas de leitura que se abrem numa leitura paralela entre as crises atuais e aquelas que dão densidade ao universo ficcional das Crónicas de Gelo e Fogo (um título tão mais belo no original: A Song of Ice and Fire).

A dada altura, neste episódio final, Tyrion Lannister (Peter Dinklage) lança-se num dos seus exercícios de retórica e pergunta: “O que une as pessoas? Exércitos, ouro, bandeiras?” Para logo responder: “Histórias. Não há nada no mundo mais poderoso que uma boa história. Nada pode detê-la. Nenhum inimigo é capaz de derrotá-la”. E a ficção sempre fez melhor política e nos disse mais sobre a direção para que apontam os corações na hora em que se deixam desfazer como rastilhos de pólvora. De resto, é curioso como no desenrolar desta oitava e derradeira temporada, o embate entre as expetativas dos fãs e a prestação dos Benioff e Weiss nos permitem estudar o frágil balanço entre a lealdade absoluta e a sedição. Uma vez que George R. R. Martins falhou todos os prazos e não encerrou a tempo a sua saga, os produtores assumiram a arriscada decisão de, por uma vez, desbravarem o caminho, servindo-se das coordenadas que o autor lhes deu, mas sendo obrigados a esforçar ao limite as suas intuições. Como muitos fãs notaram logo no primeiro episódio, a história começou a manquejar, a perder convicção nos detalhes. Sem a escrita de Martin como esteio, havia buracos, faltava aquele vigor nos contornos que distinguem um original de um produto de contrafação. Para muitos, as personagens tinham perdido a respiração interior, o lado ruminativo e também o rasgo. Os diálogos sucediam-se sustentando a ação, mas não mais que isso. Ora, se o espetáculo consegue ser eficiente ao talhar a matéria, o seu entendimento do que estrutura uma boa história continua a ser bastante limitado. E se esta produção conseguiu traduzir um sentido de grandeza wagneriano na forma como serviu um mundo visual espantosamente imersivo a uma geração que, desde muito nova, tem absorvido as suas narrativas de jogos de computador, no fim, expôs o flanco. Com toda a sua potência posta ao serviço de um gargantuesco cenário, faltou a tensão no fio narrativo.

Naturalmente, numa sociedade em que a realidade espera tradução do espetáculo para que se possa chegar ao ponto de refletir sobre ela, é de esperar que as audiências sejam muito mais competentes na hora de defender o seu circo do que são os cidadãos na hora de exigir um pouco mais do que pão. Era de esperar, por isso, que os fãs se mobilizassem pedindo a cabeça dos dois homens responsáveis por trocar por imagens as palavras de Martin. Foi assim que a petição que exige à HBO um remake da última temporada, mantendo o elenco e a restante equipa de produção mas substituindo os guionistas, ultrapassou o milhão de assinaturas em poucos dias. O recurso foi assim submetido e vamos ver se terá forças para ser atendido. Certo é que, se a HBO não ultrapassar a crise de sucessão que tem em mãos, a proposta de retomar a série irá tornar-se mais aliciante em caso de fracasso das propostas que tem em carteira para os próximos meses. De acordo com um estudo recente, estima-se que cerca de 37% dos assinantes do canal cancelem a subscrição agora que a série chegou ao fim.

E o maior perigo, como sempre, vem de dentro. Numa entrevista à Rolling Stone, George R. R. Martin não escondeu a sua desilusão com o desfecho que Benioff e Weiss congeminaram. Para o escritor, haverá dois desfechos, “duas variações” assentando sobre uma história similar. Se o autor assume que isto acontece sempre que uma história é adaptada a outro formato, também disse que gostaria que houvesse mais temporadas. Martin admite que, em parte, a culpa deste desencontro é sua, pois o seu atraso na escrita dos livros permitiu que os desvios fossem maiores, mas há algo que se lê nas suas palavras, o orgulho ferido do autor que agora tem a sua oportunidade de chamar de volta a si o destino de Westeros. “Claro que tenho uma reação emocional. Quer dizer, será que preferia que eles tivessem feito exatamente como eu fiz? É claro. Também pode ser traumatizante porque, às vezes, a visão criativa deles e a nossa própria visão criativa não combinam e fica-se com a famosa diferença criativa – que leva a muitos conflitos”. Assim, se a porta se fechou, e mesmo que a HBO queira trancá-la, neste momento já haverá outros produtores gulosos e com vontade de consolar Martin, abrindo uma janela para que ele mantenha o seu prestígio oracular como dono da mais poderosa história dos nossos dias.