Paulo da Costa Domingos. O encantador de ratos

Paulo da Costa Domingos. O encantador de ratos


Publicado há algumas semanas, “Carmes” colige e atualiza boa parte dos versos escritos ao longo de meio século pelo livreiro-antiquário e editor.


Temos de falar de Paulo da Costa Domingos. Não será dos personagens mais fáceis de aperceber nem arrumar num meio literário que está como um navio que se esconde para morrer. Entre as suas qualidades está o travo indigesto que a sua escrita nos deixa. E como o próprio tanto vinca, é de justiça reconhecer-lhe a obstinação de alguém que fugiu sempre a afirmar-se como uma “prostituta, dando à cauda entre as madamas”. Aproveitando a experiência e o exemplo de Jorge de Sena, está claro que este confesso autodidata escolheu a alternativa: a do “monstro solitário, rangendo os dentes na treva”. Falta-lhe, por outro lado, um ângulo íntimo por onde espreitar os anjos tocando flauta, em apoteose. E se há um percurso que justifica que diga de si mesmo “disputei palmo a palmo a minha vida intelectual”, servindo-se das palavras de Herculano, quando se diz rodeado de gente ignara e invejosa, apenas parece reclamar o direito a “odiar o mundo como poderia fazê-lo um santo” (Graham Greene).

Antes de irmos à obra poética, reunida há semanas em “Carmes” (1971-2018), e que tem por “tema principal o horrendo, o mais amargo desespero e as vãs e absurdas tentativas de entorpecimento e evasão” – e aqui sirvo-me da súmula de Auerbach para as “Flores do Mal”, de Baudelaire, assinalando uma linhagem comum entre profetas da desgraça, ainda que esteticamente a hipnotizante desenvoltura de um se abata no desastrado reflexo que o outro lhe serve -, deve sublinhar-se que, numa vida dedicada aos livros, onde o contributo de Paulo da Costa Domingos se mostra irrefutável, mais do que como livreiro-antiquário, é enquanto editor.

Havendo interesse em unir as tantas pontas soltas, as esgarçadas linhas com que se foi escavando um fosso entre duas atitudes e formas de estar na edição, uma inquietada e inquietante, a outra servil e descerebrada, vemos que a primeira cumpre um papel de crítica e intervenção, rechaçando energicamente os valores mercantis, ao passo que a outra depressa virou costas ao lado subvertor da cultura, para se entregar aos arranjos decorativos e com melhores perspetivas de lucro. A este respeito, o autor tem tido um papel significativo, até enquanto historiador do resiliente fenómeno da edição independente, muito embora o faça de um ângulo particular, ajeitando os factos, operando uma inclinação, nuns efeitos de perspectiva em que importa que a sua própria inserção seja favorecida. De resto, à frente da Frenesi, o valioso contributo de Paulo da Costa Domingos acabou relegado para um segundo plano face à sua endiabrada vizinhança. Falamos de editoras como a Hiena, de Rui Martiniano, a Fenda, de Vasco Santos, ou a Antígona – embora nesta o editor, Luís Oliveira, mais do que o cérebro da operação, mostrou mais dotes como comerciante, e quanto aos títulos soube acatar as indicações de um grupo de extraordinários leitores e tradutores, entre os quais merece destaque Júlio Henriques.

Paulo da Costa Domingos não apenas guardou o cordão umbilical que liga a sua editora à & etc como tem feito questão de exibi-lo o mais possível, como o primeiro na fila dos discípulos de Vitor Silva Tavares. Passando ao livro, vale a pena registar primeiro o que dizem as mãos segurando o objecto. Aqui está um volume que se livra bem de ser tomado por um tijolo, e que é até bastante maneirinho. Mas como já aqui se assinalou, esta colecção azulcobalto da Companhia das Ilhas surripiou o formato dos livrinhos & etc, e o editor (Carlos Alberto Machado) não acha necessário assumir a dívida ou sequer disfarçá-la à conta de homenagem. Caiu, infelizmente, pelo caminho o grácil nó artesanal do catálogo do subterrâneo três, que ia de braço dado com o esmero gráfico na composição dos livros. E outra discrepância vê-se na pressa desta frente à calma do outro. Levou à editora da ilha do Pico sete anos para chegar aos 160 títulos, ao passo que os poucos mais de 300 da &etc preencheram 40 anos da vida do seu editor.

Quanto a esta recolha, o leitor que abra ao calhas nalguma das suas quase 600 páginas, cedo ficará desapontado com os poucos dentes do pente antológico usado. Indo para trás ou para a frente, dá sempre a sensação de se estar no meio, perdido, com mil milhas de erva morta em qualquer direcção, e sem que um punhado de estrelas se arrume na muita noite que nos cerca para nos socorrer com algum sentido. É um suplício vir para este terreno inóspito tentando ensaiar contornos, um esboço cartográfico. E as coordenadas que o autor nos serve numa nota introdutória mostram-se deceptivas, falando dos versos recolhidos como algo que se salvou de um processo de erosão. Ora, o que menos se sente nesta obra é esse generoso efeito natural de elisão. Tudo nos surge abespinhado, cru, com a fetidez própria dos escritos de juvenília.

Vem a propósito lembrar como Luiz Pacheco, diante do título que o autor assume como a sua estreia – “Gogh Uma Orelha sem Mestre” (1975) -, livro que sucede a outra falsa partida, provou o seu faro sobrenatural, e numa bordoada resolveu o assunto de vez, tendo cheirado o destino deste autor ainda nas fraldas. Descrevendo o livro como “uma gavrocherie com um cheirete a fraldas, anarquismo de berlinde e calção”, não foi meigo, e ainda piorou as coisas dizendo que “esperava mais e melhor do Paulinho, aliás uma jóia de moço, mas calado, mas com os dedos quietos, sem que ‘esgarcem, bestiais, a escrita’ (isto é tirado dele, pág. 28)”. Volvidas quatro décadas, com este volume fica claro que Paulo da Costa Domingos teimou em que os seus instintos estariam certos, e que era o outro quem dava sinais de caquexia. Terá esperado leitores menos indóceis e nessa aposta, pelo menos, o afrouxamento de critérios saiu em seu socorro. Assim, não tem faltado quem veja aqui uma obra da maior grandeza. Ainda no outro dia um dos moços o cobria-o de louvores, garantindo que a “expletiva, o impropério, ou a invectiva” nesta versice assanhada “não carrega como a polícia de choque”, mas que “chama os mais nefastos bois pelos piores nomes”. Sim, os pobres dos bois, esses bois gerais de que tanto se fala, denunciando um mal que se move entre nós como uma nebulosa. E aqui vale a pena citar o autor, que no poema “Turno da Noite” diz que “falta atrevimento/ entre sirene e sirene,/ repetição dos gestos na gesta/ do ódio entrevado…” Porque é este o beco característico onde vem morrer o mal-estar que nos faz perder tempo com a “cabra da literatura” (Léon Bloy). Este ódio é vesgo, um ódio entrevado e que se desbarata no sem sentido. No que cada um tem perto de si, a regra é assobiar para o lado, reservando-se as pedras para o que está para lá do seu alcance. Assim, atacam-se só os alvos que nem a picada sentem. É como se o mosquito se servisse de uma longa palhinha: chupa a sua gotita mas rejeita o risco de que possa cair-lhe em cima a manápula e esmagá-lo nesse instante de audácia.

Há uma curiosa ressalva que Paulo da Costa Domingos serve naquela nota introdutória, uma intrometida didascálica, que poderá amarrar o incauto leitor a um jogo de identificação de vozes, uma dramaturgia lassa, afirmando que na dicção dos seus versos contracenam o revoltado, o doente terminal, a mulher (a absentista, a sedutora, a camponesa, a ladra…), o néscio, o vingativo, o amoroso e até mesmo o cadáver. “É todo um serviço complexo de recursos linguísticos, satisfazendo as exigências do desdobramento nesses sujeitos dramáticos.” É de génio esta. Uma espécie de seguro contra todos os riscos. Se um verso lhe sai torto (e tantos saem), a culpa pode sempre ser do néscio. Se há excesso de pathos, tantos momentos que provocam vergonha alheia, pode sempre atirar-se as culpas ao vingativo ou ao amoroso. E se falta o pulso em tantas páginas deste corpus, o leitor certamente há-de perdoá-lo ao doente terminal. 

Por mais que chame a si a voz dos desvalidos, temos de superar esta ressalva de algum modo, e atribuir ao dramaturgo o engonhanço dos seus bonecos. Nisto, é chegada a altura em que, para ir mais longe, se espera do crítico que pendure aqui uma série de gaiolas, dando uma ideia do fuzué que reina naquela loja de animais. Não é muito difícil alinhar exemplos entre um tão exasperante castigo de palavras, um enxovalho do idioma em que as palavras nos surgem crispadas por se verem metidas num tão inepto elenco… “daqui observo/ o ranger oleado da inteligência/ artificial, a hemorragia sufocante do bosque mineral./ Desta minha casa tatuada a resina e nuvens/ fio o novelo carbónico de hordas, vigília/ silvo de hulha no plexo. Aprisionado em/palavras de libertação inútil.” (pág. 94).

Paulo da Costa Domingos diz-nos que a revisão geral dos livros o levou a encurtar, e adianta que buscou a coesão, mas que o fez também a título de exemplo, “porque escreve-se demasiado”. É bom que seja o autor a dizê-lo, assim justificando a perplexidade do leitor que esperaria um desbaste mais produtivo, e que o sabe capaz de alguns acertos, lampejos que nos dão ânimo, como logo no início quando fala em “reunir os ossos no labirinto do sonho”, ou se pinta a si, ou a algum dos amigos que se escapulem dos muros daquela esquizofrenia criativa, nestes termos: “Eu sentado nesta cadeira querendo ser/ tão velho como o caroço do mundo/ disperso em sacudir insectos ao infinito”… 

São impressões que apontam para outra coisa, mas ficam, lamentavelmente, espalhadas como cascas: “três rosas nos dentes e uma lenda mortífera de buscas.” Com tristeza, a seguir a qualquer arrebatamento damos por nós a cair noutro túmulo (“Arrebatamento e túmulo” é, de resto, o título de um dos poemas). Ficamos à espera daquela “energia expressa em cativeiro”, de algum pesadelo fabuloso do revoltado no seu “amor aos fungos aos bolores/ ao coalho, liriformes”. Mas as fulgurâncias vão rareando, a influência dos beatnik, do punk, degenera no balofo fraseado dos piores panfletos situacionistas, trocando a ardência do delírio por um tacho ao fogão cozendo batatas com cuspo, caca e ramelas. No fim, sobram demasiados versos barafustando, atoardas, anotações desavindas, uma espiral vertiginosa de bugigangas verbais que levam o leitor a cabecear, lendo por alto, como se escutasse beatas a rezar um terço de forçada infâmia.

Por entre raivas de costureira, damos por nós servidos de uma modernidade que tresanda a medievalismo, com os detritos industriais incrustados na pele, no organismo que se esperaria que se erguesse, mas se sacrifica uma e outra vez num “altar de tédio”. Noutro ponto, uma voz que podia implorar um fim para a sua miséria, diz: “Passa-me à máquina estas crostas saem estes rumores do asfalto de todas as estradas ulceradas d’oiro”. Que pessegada. E é um não acabar de “frases incompletas ali presas/ como cola no palato, em círculo…” Chega a ser divertido como, neste desaire sem fim à vista, vamos recolhendo os rabos de frases que marcam aquilo que nos inspiram estes versos desencaminhados dos primeiros livros, e que não passam de prosa encurralada, ou os versos mais escandidos a partir de metade da recolha, que lembram as letras frias de uma canção de protesto do qual fugiu a canção, deixando os ossos entre os quais o ritmo não se entendeu. “Supõe que não dói. Ou dói como um rosário/ contra-natura, o negrume da terra humedecido/ ar invadido por murmúrios dos ossos/ substantivos e verbos perto do músculo, a força// de palavras moídas hipercondensadas (…) idas à caça disparando sobre os animais/ errados (…) no fim/ queres somente retardante e sensitivo.” É isso, é essa a sensação.

O leitor dá por si com um zumbido nos ouvidos, e pergunta-se o que é feito do trabalho de erosão. Que raio de elementos naturais, ao fim de décadas, fizeram um tão pobre serviço de limpeza nesta absurda geografia. Seguimos o autor a partir de “A Vau”, páginas trezentas e adiante, como a um padreco cadaveroso dando-nos sermões, revezando-se aqui e ali com um cangalheiro bêbado que vem aos tropeções e, com um rancor pela estima gasta com os mortos, se dedica a assolar as visitas no cemitério. Pragueja como alguém que se viu “expulso do coração da fala”, com “espantos escarrados no rodapé”, tentando dar algum sentido à “miséria exposta na roda viva”. Se na primeira parte o que é característico desta escrita é o cheiro a despegado, agora vem a verrina que morre bem no panfleto: “Mais de que com o triunfo/ dos porcos, estamos hoje/ a braços com o diálogo/ dos estúpidos e as nódoas// negras das esposas: vasos/ virados do avesso, contas/ bancárias devassadas – enfim/ a paz podre das famílias…” E isto explica-se num poeta que nos diz que “nem o ‘gemido’ eliotiano// merecemos”. E que entrega a estas “vozes de uma maldição” impressões como esta: “Vive-se/ o sossego psicótico/ do auto-assassínio,/ bainhas cheias de mesquinho// cotão.”

Já vimos isto dito de forma mais tocante, até dilacerante, sem dar cabo dos anjos nem lhes quebrar as flautas. Mas aqui só temos a doença: “Nossa carne decompõe-se/ numa florália daninha, parasita/ que as lindas raparigas fumam/ às portas giratórias da mente// à espera de sirenes de fábrica…”. Tudo muito doloroso… e aborrecido. O poeta agarra-se à sua profecia, e gesticula descontroladamente para dar uma ideia da altura das chamas infernais, como um envaidecido cura que não quer descer do púlpito dominical. Mas aquilo que Paulo da Costa Domingos esquece é que “o inferno também tem os seus claustros" (Bernanos).

Nesta obra, movida por uma sanha de quem parece empenhado em converter-nos a uma fé ad hoc, e que vai sendo escrita na sombra do pregador, “como peganhento rastro de/ lesma”, os leitores sentam-se com ar apatetado e juntos “jogamos xadrez nos tabuleiros/ do ultraje”. É uma insaciável denúncia que nos faz pensar nas rezinguices de um paranóico. Não um só, mas vários, as tantas vozes que se açulam numa cabeça desgovernada: “e nós saboreamos a noite/ em bibliotecas petrificadas de pavor/ cujos alicerces mergulham/ na rede de esgotos da cidade”. E talvez só nos reste sermos salvos pela doença que nos torna incapazes de grandes enlevos estéticos. Tudo isso morre aqui, para dar lugar à “secura”: “A boca sêca do bode expiatório/ olheiras como beiços de baba.// No tacho fumega o enxofre,/no horizonte dançam silhuetas/ pés descalços nos negros charcos// Uiva o milénio por baixo da porta// Os insectos estão finalmente quietos/ irrequietos só os miúdos e suas mães/ por causa de uma inesperada tosse.” (pág. 475). É uma visão do fim que não se cansa das suas réplicas, de um estertor que profetiza: “Já ninguém haveria agora para nascer.”

Avançamos a custo como se por um pântano de palavras, uma terra feita da própria náusea, esse lugar onde dizia Lêdo Ivo que os navios se escondem para morrer, e em cujos porões vazios “só ficaram os ratos/ à espera da impossível ressurreição”. Águas estagnadas, ruídos de um estômago tentando digerir o fim do mundo. E podia tomar-se este trator escavando veios, sepulcros, como algo de poderoso, mas esta obra parece o trabalho de quem escava outro degrau, e outro depois desse, apenas para descer mais baixo. É uma poesia que nos surge desde um futuro desolador, escrita já depois de no mundo estarmos todos surdos. A obra de alguém que das palavras não guardasse já os sons mas só essa caligrafia de sombras roedoras, uma poesia com o forro roto e cheia de ratos. Uma poesia que se escreve com ratos, aplicada numa escavação doentia, desesperada. Há aqui uma persistência atroz e que se faz numerosa, desfila diante de nós esse rebanho que vive no mais profundo das trevas, rafando-nos o juízo, roendo o pulso da alma. Alguém que, batendo com a cabeça na vidraça de um hospício, procurasse ecoar um morse qualquer. Não para pedir socorro, algum alívio contemplando a fuga. Antes como quem martela e se diz rei do seu castelo num desses “subúrbios de urina e querosene” (Lêdo Ivo).