Pouca gente se lembra, mas naquela noite choveu. “Não uma chuva torrencial, uma chuva miudinha”. Por isso se caiu tanto, terá contado alguém, porque o chão escorregava quando a multidão que se tinha concentrado na António Maria Cardoso se viu obrigada a fugir aos disparos dos agentes da PIDE/DGS. “Já estávamos a falar há duas horas quando ele me falou da chuva, e de como o chão escorregava. Outro disse que a história não foi bem assim […], há quem tenha dito que não foi bem assim”.
Melhor será escutar o que dizem os diretos da rádio: “Muita gente nova. A tropa, aliás, deve salientar-se, tratou sempre extremamente bem as pessoas que estavam aqui na Baixa, como noutros sítios. Tratou sempre as pessoas com uma fluidez extraordinária. Diria que isto é um pouco surrealista, assim à maneira portuguesa: é uma revolução que acontece e as pessoas participam nela”.
E ela, esta personagem de uma mulher posta no corpo de uma criança entre as ruas de Lisboa, há de explicar como tudo isto começou: “Pode contar-me a sua história deste lugar?”. Ou antes: “Conta-me como imaginas que foi”, porque “de facto, a memória tem…” E ficará assim, esta frase, incompleta. Incompleta mas sempre ligada, pelo menos durante as duas horas e meia que durar esta Ocupação do Teatro do Vestido no São Luiz, ligada a uma referência ao Último Ano em Marienbad, de Alain Resnais.
“É uma referência que surgiu numa das entrevistas”, explica Joana Craveiro, autora e encenadora do espetáculo. “Acaba por ser retomada em várias cenas porque funciona como uma metáfora para o próprio espetáculo, quando ela diz: ‘É como o Último Ano em Marienbad. Lembras-te daquilo da memória?’. E é uma referência para toda uma geração, o Alain Resnais.”
Será possível que alguém nunca o tenha visto? Se não viu, viu Casablanca, que virá também numa outra cena a que poderemos chamar episódio que mais parecerá um encontro com fantasmas do passado – como quase tudo neste texto escrito a convite do São Luiz a propósito da comemoração dos seus 125 anos. Fantasmas que de qualquer modo Joana Craveiro não vê como fantasmas exatamente, mas como corpos.
“Qualquer pessoa que faça teatro sabe que estamos permanentemente a fazer nascer e a enterrar coisas. Como este espetáculo: vamos fazer estas récitas e depois não vamos fazer mais. O Teatro do Vestido tem uma longa história de espetáculos assim porque trabalhamos em site specific, escrevo mesmo para os espaços, para os atores, para a sala, para um contexto e às vezes é mesmo impossível voltar a fazer”, explica ao i. “No teatro há sempre esta ideia de uma morte permanente, de estarmos sempre a enterrar. Falam-me de fantasmas, acho que não são só fantasmas, acho que são mesmo corpos que habitam os teatros. E, neste teatro, há ainda as camadas dos textos que não chegaram a ser feitos – ainda outro tipo de corpo.”
Um “sítio lixado para se estar”
Daí que alguém se pergunte, às tantas, onde esconderão eles “tantos corpos”. Duvidaremos sobre se estes corpos de que nos fala; se os corpos dos que morreram na rua que noutro tempo não era apenas a rua de um teatro, era a rua da sede de PIDE. “A relação de um teatro paredes meias com um local de tortura e de prisão era uma coisa que me intrigava. Além disso, nos relatos do próprio dia 25 de Abril [o São Luiz] aparece como um sítio em que as pessoas se esconderam dos tiros. Tudo isto estava necessariamente ligado à história do São Luiz e por isso era impossível falar deste teatro sem falar da sua localização.”
De cena em cena, por salas, por corredores, camarins, o subpalco onde ouviremos a história de tudo o que uma morsa engoliu de tudo por uma escritora de um país que já não existe (O Museu da Rendição Incondicional, da croata Dubravka Ugrešic), todos esses lugares e ainda o espaço lá fora, que também faz o teatro, andaremos no lugar do meio. O meio que nos avisam logo de início que há de ser um “sítio lixado para se estar”, com a promessa de que, desligando os telemóveis, tudo há de correr bem. De acabar bem.
Sala Luís Miguel Cintra, sala Mário Viegas, e à porta montado um quarto, o quarto de M.V. quando essa parecer ainda uma sigla igual às outras, mais um livro, Orfeu, com essas mesmas iniciais. Será também sobre livros, a memória que guardam os livros que se encontram sublinhados já, este espetáculo. Dessa ideia de memória não haveremos de sair. Entre memórias daquela noite mas de muitas outras noites.
Por exemplo, a noite – ou fim de tarde? – da primavera de 1966 em que Maria Barroso deixou de ser atriz sem que ninguém se apercebesse de que era a esse fim que assistia quando um grupo de agentes da PIDE irrompeu pela sala lançando bombas de cheiro que fez o público abandonar a sala. Entre eles, Joaquim Benite, ainda jornalista, que a recordaria muitos anos depois como “uma frágil mulher ao telefone tentava, com amargura e impaciência, religar os fios partidos de uma vida”. Com uma voz que “era a voz da perplexidade e da angústia da perda, a voz humana”.
Era A Voz Humana, de Jean Cocteau, um dos vários textos que marcam a história do São Luiz que o Teatro do Vestido recupera em Ocupação, com um agradecimento, na folha de sala, a Maria Barroso, “por ter continuado a récita da peça até ao fim”.
A muitas outras noites chegarão estas duas horas e meia de espetáculo para viajar, como a outros espetáculos como A Mãe, de Stanislaw Witkiewicz, e todas as noites que, sob a direção de Luiz Francisco Rebello, terá levado a preparar para nunca chegar a estrear.
Entre todas as noites, os episódios evocados do lugar do meio em que se há de passar esta noite (cada uma das noites em que, até 30 de abril, Ocupação estiver em cena no São Luiz), não haverá de vez alguma quem possa ter a certeza do que exatamente aconteceu. E não são mesmo assim as memórias?