Reformados: pecunia non olet


O que anda a fazer a Segurança Social? A Provedora de Justiça tem uma resposta: anda a pedir à Autoridade Tributária para penhorar bens a pessoas que não lhe pagam a tempo e horas.


Se alguma coisa parece que aconteceu nos últimos quatro anos foi que tudo ia bem no reino não da Dinamarca, mas de Portugal. O atual Governo geriu um país em que as faturas mais caras tinham sido pagas pela direita e beneficiou da política de baixas taxas de juro do BCE. Tudo parecia encaminhado para umas europeias folgadas e umas legislativas a roçar a maioria absoluta quando, de repente, aparece o “Familygate” e a greve dos combustíveis, que puseram a nu quer o compadrio endémico da democracia portuguesa, quer a falta de preparação do Estado para casos de greves provenientes daquilo a que o governo gosta de chamar “associações inorgânicas de protesto” ou, como eu gosto de chamar, greves não patrocinadas pelo PCP. Ou melhor, greves não patrocinadas pela CGTP, assim é que é! Pensando bem, é tautológico: distinguir o PCP da CGTP é como distinguir uma doninha dum furão. Sem quaisquer segundas intenções. Foram só os primeiros sinónimos que me vieram à cabeça.

Quem ouça Mário Centeno falar a um órgão de comunicação social que não o Financial Times pensa que vivemos num tempo de vacas gordíssimas. E não é só preciso ouvi-lo, basta ver a mais recente medida de subsidiação dos passes dos transportes para constatar a pujança das finanças públicas portuguesas. Ou será que não é bem assim?

A Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, deu uma esclarecedora entrevista à Antena 1 em que informou que o número de queixas relativas a atrasos na atribuição de reformas por parte da Segurança Social quadruplicou. Sim, quadruplicou. É um aumento de 300%. Por dia, a cada 60 queixas que a provedoria recebia, 40% eram relativas a estes atrasos, ou seja, 24 por dia. Coisa de somenos, portanto. Só no primeiro trimestre deste ano houve 217 queixas relativas ao mesmo tema. Destas queixas, um elevado número de pessoas está há mais de um ano à espera de resposta. Digo um elevado número e não um número concreto porque o governo, ao bom estilo democrático, não divulga dados oficiais. E se tiver feito carreira em dois países, então esqueça: numa reportagem da jornalista Ana Leal na TVI sobre o mesmo tema, uma senhora cuja mãe trabalhou em França recebeu a informação de que as atribuições para portugueses que trabalharam no estrangeiro estão atrasadas, aproximadamente, três anos. E ainda dizem que as cativações não dão grandes números!

Mas o que anda então a fazer a Segurança Social? A Provedora de Justiça tem uma resposta: anda a pedir à Autoridade Tributária para penhorar bens a pessoas que não lhe pagam a tempo e horas. É uma dicotomia curiosa: a mesma entidade que tem, por lei, três meses para responder a pedidos de reforma e demora mais de 12 meses a fazê-lo é a mesma que penhora bens e congela contas bancárias quando as pessoas se atrasam uma semana a pagar as suas dívidas. Eu não sou de direito, mas ponho as mãos no fogo quando digo que isto deve ser o tão afamado princípio da proporcionalidade. As queixas quanto a estas penhoras e execuções coercivas, muitas delas ilegais quer por prescrição da dívida, quer porque a sua cobrança foi feita dentro do prazo legal para regularização da mesma, também estão a aumentar. O contribuinte paga coima e juros de mora pelos seus atrasos; já a Segurança Social, adivinharam, está isenta dessas minudências! Mais tarde, quando a reforma é finalmente atribuída, vem um bolo tão grande que aumenta o escalão de IRS do reformado.

As consequências destes ligeiros atrasos são, contudo, pouco relevantes, claro está. Falo com conhecimento de causa, na medida em que tenho uma pessoa familiar que está a ser sustentada pelo seu descendente enquanto espera pela atribuição da reforma. Já lá vão dez meses, neste caso. Ainda é cedo. Porém, há situações ligeiramente mais desagradáveis (mas só ligeiramente): pessoas cuja espera e ausência de rendimentos levou à penhora das suas casas, pessoas a trabalhar para além da idade da reforma para terem dinheiro e pessoas que se endividaram para sobreviver à espera. E não, não estamos a falar de pessoas abastadas: os suprarreferidos prazos aplicam-se também a pensões de sobrevivência e de invalidez.

Apesar de não responderem diretamente nem à Provedora de Justiça nem ao Partido Aliança, que pediu uma audiência para abordar o tema, a secretária de Estado da Segurança Social, Cláudia Joaquim, e o ministro do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, Vieira da Silva, pai (não confundir com Vieira da Silva, filha, porque, como já sabemos, este governo é pródigo em laços familiares), já fizeram saber de quem é a culpa, se bem que nem precisavam. Até o leitor já sabe: é de Pedro Passos Coelho. Pedro Passos Coelho avisou em 2015 que o diabo ia chegar. Mas, passados quatro anos, constata-se que o diabo é ele, pois não há nada que corra mal a este Governo que não seja culpa desse mafarrico. Fogos, greves, atrasos nas pensões: tudo é culpa da vileza de Pedro Passos Coelho e da direita portuguesa, que expulsou os trabalhadores da Segurança Social. É um governo que, coitadito, em quatro anos não pôde fazer nada. Desde que António Guterres tomou posse, a 28 de outubro de 1995, passaram cerca de 23 anos e seis meses, dos quais o PS governou 16 anos e quatro meses, i.e., 70% de todo o hiato temporal. De facto, ninguém consegue governar nestas condições.

Suetónio conta-nos que, quando Tito se queixou ao pai, Vespasiano, da asquerosa proveniência do imposto sobre a urina, este respondeu-lhe que pecunia non olet, ou seja, o dinheiro não tem cheiro. Mário Centeno parece ter aprendido a lição. Para ele subir na carreira, muitas cativações tiveram de ocorrer. O caminho para o superávite é sinuoso, mas frutífero. Neste caso das reformas, por exemplo, o wannabe reformado é, assim, duplamente penalizado: não tem dinheiro para pagar as suas despesas correntes porque a Segurança Social não lhe paga o que lhe é de direito e, mais tarde, quando finalmente chega o dinheiro que lhe é devido, é obrigado a pagar impostos em excesso do que devia. Esse excesso só retorna ao seu bolso no ano vindouro, quando declara o seu IRS. Desta forma, o contribuinte empresta duas vezes dinheiro ao Estado a 0% de juros, para além de incorrer em potenciais perdas de património. Chapeau, dr. Mário Centeno! Com estas cativações e outras que tais, como as do SNS, ele preside hoje ao Eurogrupo, mas estou seguro de que ambiciona algo maior como um BCE, um FMI ou, quiçá, um Banco Mundial ou até mesmo uma Comissão Europeia. Estou seguro de que, quando e onde quer que ele chegue, estes wannabe reformados e os portugueses em geral terão o seu agradecimento. Quer estejam vivos ou defuntos… independentemente do seu cheiro.

 

Reformados: pecunia non olet


O que anda a fazer a Segurança Social? A Provedora de Justiça tem uma resposta: anda a pedir à Autoridade Tributária para penhorar bens a pessoas que não lhe pagam a tempo e horas.


Se alguma coisa parece que aconteceu nos últimos quatro anos foi que tudo ia bem no reino não da Dinamarca, mas de Portugal. O atual Governo geriu um país em que as faturas mais caras tinham sido pagas pela direita e beneficiou da política de baixas taxas de juro do BCE. Tudo parecia encaminhado para umas europeias folgadas e umas legislativas a roçar a maioria absoluta quando, de repente, aparece o “Familygate” e a greve dos combustíveis, que puseram a nu quer o compadrio endémico da democracia portuguesa, quer a falta de preparação do Estado para casos de greves provenientes daquilo a que o governo gosta de chamar “associações inorgânicas de protesto” ou, como eu gosto de chamar, greves não patrocinadas pelo PCP. Ou melhor, greves não patrocinadas pela CGTP, assim é que é! Pensando bem, é tautológico: distinguir o PCP da CGTP é como distinguir uma doninha dum furão. Sem quaisquer segundas intenções. Foram só os primeiros sinónimos que me vieram à cabeça.

Quem ouça Mário Centeno falar a um órgão de comunicação social que não o Financial Times pensa que vivemos num tempo de vacas gordíssimas. E não é só preciso ouvi-lo, basta ver a mais recente medida de subsidiação dos passes dos transportes para constatar a pujança das finanças públicas portuguesas. Ou será que não é bem assim?

A Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, deu uma esclarecedora entrevista à Antena 1 em que informou que o número de queixas relativas a atrasos na atribuição de reformas por parte da Segurança Social quadruplicou. Sim, quadruplicou. É um aumento de 300%. Por dia, a cada 60 queixas que a provedoria recebia, 40% eram relativas a estes atrasos, ou seja, 24 por dia. Coisa de somenos, portanto. Só no primeiro trimestre deste ano houve 217 queixas relativas ao mesmo tema. Destas queixas, um elevado número de pessoas está há mais de um ano à espera de resposta. Digo um elevado número e não um número concreto porque o governo, ao bom estilo democrático, não divulga dados oficiais. E se tiver feito carreira em dois países, então esqueça: numa reportagem da jornalista Ana Leal na TVI sobre o mesmo tema, uma senhora cuja mãe trabalhou em França recebeu a informação de que as atribuições para portugueses que trabalharam no estrangeiro estão atrasadas, aproximadamente, três anos. E ainda dizem que as cativações não dão grandes números!

Mas o que anda então a fazer a Segurança Social? A Provedora de Justiça tem uma resposta: anda a pedir à Autoridade Tributária para penhorar bens a pessoas que não lhe pagam a tempo e horas. É uma dicotomia curiosa: a mesma entidade que tem, por lei, três meses para responder a pedidos de reforma e demora mais de 12 meses a fazê-lo é a mesma que penhora bens e congela contas bancárias quando as pessoas se atrasam uma semana a pagar as suas dívidas. Eu não sou de direito, mas ponho as mãos no fogo quando digo que isto deve ser o tão afamado princípio da proporcionalidade. As queixas quanto a estas penhoras e execuções coercivas, muitas delas ilegais quer por prescrição da dívida, quer porque a sua cobrança foi feita dentro do prazo legal para regularização da mesma, também estão a aumentar. O contribuinte paga coima e juros de mora pelos seus atrasos; já a Segurança Social, adivinharam, está isenta dessas minudências! Mais tarde, quando a reforma é finalmente atribuída, vem um bolo tão grande que aumenta o escalão de IRS do reformado.

As consequências destes ligeiros atrasos são, contudo, pouco relevantes, claro está. Falo com conhecimento de causa, na medida em que tenho uma pessoa familiar que está a ser sustentada pelo seu descendente enquanto espera pela atribuição da reforma. Já lá vão dez meses, neste caso. Ainda é cedo. Porém, há situações ligeiramente mais desagradáveis (mas só ligeiramente): pessoas cuja espera e ausência de rendimentos levou à penhora das suas casas, pessoas a trabalhar para além da idade da reforma para terem dinheiro e pessoas que se endividaram para sobreviver à espera. E não, não estamos a falar de pessoas abastadas: os suprarreferidos prazos aplicam-se também a pensões de sobrevivência e de invalidez.

Apesar de não responderem diretamente nem à Provedora de Justiça nem ao Partido Aliança, que pediu uma audiência para abordar o tema, a secretária de Estado da Segurança Social, Cláudia Joaquim, e o ministro do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, Vieira da Silva, pai (não confundir com Vieira da Silva, filha, porque, como já sabemos, este governo é pródigo em laços familiares), já fizeram saber de quem é a culpa, se bem que nem precisavam. Até o leitor já sabe: é de Pedro Passos Coelho. Pedro Passos Coelho avisou em 2015 que o diabo ia chegar. Mas, passados quatro anos, constata-se que o diabo é ele, pois não há nada que corra mal a este Governo que não seja culpa desse mafarrico. Fogos, greves, atrasos nas pensões: tudo é culpa da vileza de Pedro Passos Coelho e da direita portuguesa, que expulsou os trabalhadores da Segurança Social. É um governo que, coitadito, em quatro anos não pôde fazer nada. Desde que António Guterres tomou posse, a 28 de outubro de 1995, passaram cerca de 23 anos e seis meses, dos quais o PS governou 16 anos e quatro meses, i.e., 70% de todo o hiato temporal. De facto, ninguém consegue governar nestas condições.

Suetónio conta-nos que, quando Tito se queixou ao pai, Vespasiano, da asquerosa proveniência do imposto sobre a urina, este respondeu-lhe que pecunia non olet, ou seja, o dinheiro não tem cheiro. Mário Centeno parece ter aprendido a lição. Para ele subir na carreira, muitas cativações tiveram de ocorrer. O caminho para o superávite é sinuoso, mas frutífero. Neste caso das reformas, por exemplo, o wannabe reformado é, assim, duplamente penalizado: não tem dinheiro para pagar as suas despesas correntes porque a Segurança Social não lhe paga o que lhe é de direito e, mais tarde, quando finalmente chega o dinheiro que lhe é devido, é obrigado a pagar impostos em excesso do que devia. Esse excesso só retorna ao seu bolso no ano vindouro, quando declara o seu IRS. Desta forma, o contribuinte empresta duas vezes dinheiro ao Estado a 0% de juros, para além de incorrer em potenciais perdas de património. Chapeau, dr. Mário Centeno! Com estas cativações e outras que tais, como as do SNS, ele preside hoje ao Eurogrupo, mas estou seguro de que ambiciona algo maior como um BCE, um FMI ou, quiçá, um Banco Mundial ou até mesmo uma Comissão Europeia. Estou seguro de que, quando e onde quer que ele chegue, estes wannabe reformados e os portugueses em geral terão o seu agradecimento. Quer estejam vivos ou defuntos… independentemente do seu cheiro.