VAR. A ferramenta indispensável que ainda precisa de afinações

VAR. A ferramenta indispensável que ainda precisa de afinações


Parecia difícil, mas o ruído no futebol português à volta das decisões de arbitragem cresceu desde a chegada do sistema de videoárbitro. Rui Santos, que fez campanha para introduzir esta ferramenta, continua a defendê-la e diz que é preciso investir ainda mais na tecnologia.


Grandes golos, assistências sublimes, defesas incríveis, jogadas de mestre, dentro das quatro linhas ou a partir dos bancos de suplentes. Tudo isto compõe a magia de um jogo de futebol; tudo isto vive num plano secundário – ou ainda mais abaixo – em Portugal, onde as polémicas com as arbitragens e as trocas de acusações entre dirigentes (nomeadamente dos três ‘grandes’: Benfica, FC Porto e Sporting) usurpam praticamente todo o espaço mediático reservado à modalidade.

Foi com essa realidade como pano de fundo que as entidades que regulam a competição em Portugal decidiram, ainda na época 2016/2017 e de uma forma experimental, utilizar na final da Taça de Portugal, disputada entre Benfica e Vitória de Guimarães, o sistema de videoárbitro (vulgarmente designado por VAR, sigla para video assistant referee), em que um árbitro analisa, com recurso a imagens, as decisões tomadas pelo árbitro principal e as valida ou anula, consoante o que achar mais correto tendo em conta o que viu em vídeo. A ferramenta já vinha a ser utilizada nos Estados Unidos e na Austrália.

A experiência agradou, numa partida onde não se verificaram casos de maior, e foi tomada a decisão de adotar a utilização do VAR na I Liga e nas finais de Supertaça e Taça de Portugal a partir da temporada 2017/18, fazendo de Portugal uma das ligas europeias pioneiras nesse processo, juntamente com a italiana e a alemã.

Braga-FC Porto, Feirense-Benfica… Volvidos quase dois anos da implementação definitiva do VAR nas principais competições nacionais – com realce para o campeonato da I Liga -, é duvidoso que a ferramenta tenha trazido paz ao futebol português. Pelo contrário: o ruído e o clima de suspeição em torno da arbitragem, dos jogos de bastidores e do tráfico de influências só aumentou, e de forma exponencial, para patamares que tornam o ambiente quase irrespirável.

Já é até quase impossível pensar numa jornada sem polémicas em torno das decisões das equipas de arbitragem, e especificamente do árbitro assistente de vídeo. Basta pensar, por exemplo, nas últimas duas semanas: na ronda 27, o FC Porto venceu em Braga por 3-2, beneficiando de duas grandes penalidades – uma das quais muito contestada pelos bracarenses… e pelos benfiquistas -, com Jorge Sousa como árbitro principal e António Nobre como VAR. Três dias depois, a partida repetiu-se, agora para a segunda mão das meias-finais da Taça de Portugal, com Manuel Mota a dirigir e Rui Oliveira a assistir via vídeo, e terminou com António Salvador a afirmar existirem “criminosos no futebol e na arbitragem”, queixando-se de um golo mal anulado aos bracarenses e ainda de dois penáltis por assinalar a seu favor e de um vermelho que terá ficado por mostrar a Maxi Pereira, numa partida que terminou empatada a uma bola – os dragões tinham vencido por 3-0 na primeira mão, pelo que confirmaram assim a presença na final do Jamor.

Já na ronda passada, a grande penalidade que abre o triunfo dos portistas no dérbi frente ao Boavista (2-0) também mereceu contestação, mas seria o Feirense-Benfica (1-4), apitado por João Pinheiro e com Bruno Paixão no VAR, a fazer correr rios de tinta – e de horas e horas de debates televisivos. Tudo devido ao golo invalidado ao último classificado, que seria o momentâneo 2-0, e também ao penálti que permitiria aos encarnados chegar ao empate: sucederam-se as acusações e insinuações por parte dos portistas, nomeadamente do seu diretor de comunicação, Francisco J. Marques, e as respostas encarnadas através da sua conta de Twitter especialmente criada para atacar os rivais… com polémicas de arbitragem, claro está.

O grande impulsionador Um dos mais acérrimos defensores da necessidade de se implementar o sistema do VAR em Portugal foi Rui Santos. O jornalista e comentador, ligado à SIC desde 2002, foi o grande dinamizador do Movimento pela Verdade Desportiva, uma iniciativa que levou até à Assembleia da República, ainda em 2010, e acolheu com grande entusiasmo a notícia de que a ferramenta iria ser adotada nas competições nacionais.

Por essa razão, o i procurou saber o que balanço Rui Santos faz destes meses de VAR no futebol português: trouxe benefícios ou nem por isso? “Quando lançámos o debate sobre a introdução da figura do videoárbitro no futebol em Portugal, a minha intenção era diminuir drasticamente o número de erros grosseiros na arbitragem. E isso já foi conseguido. As discussões que existem têm a ver com lances de interpretação e, com as leis de jogo existentes, com uma percentagem alta de subjetividade, elas vão continuar a existir. Mas, mesmo considerando todas as imperfeições – e algumas são estruturais -, o futebol com VAR é muito melhor e mais verdadeiro do que o futebol sem VAR. Se não houvesse VAR no futebol português, o nível de discussão seria ainda maior (parece impossível, mas é mesmo assim). Independentemente das paixões clubísticas, já não faz sentido um futebol sem VAR. Por isso, considero que sim, foi benéfico, os erros grosseiros diminuíram drasticamente. Os erros que existem têm a ver com a qualidade dos nossos árbitros e, fundamentalmente, com a conjuntura em que estão integrados”, considera.

Assim sendo, qual a razão para continuar a existir tanto ruído e tanta polémica? “Já estamos noutro patamar: aquele que exige o aperfeiçoamento das bases tecnológicas em que assenta o VAR. Não faz sentido que não haja linhas certificadas de fora-de-jogo. Com videoarbitragem, o fora-de-jogo não pode continuar a projetar decisões subjetivas mas absolutamente objetivas. Eliminar essa dúvida, através de um sistema credível de certificação de linhas, é baixar significativamente o ruído. O sistema tem de ser, no entanto, absolutamente fiável, e é com esse argumento – o da preparação e aceitação desse sistema – que a FPF vai justificando o respectivo adiamento”, salienta o comentador e jornalista, afirmando mesmo que “ontem já era tarde” para se avançar com melhorias nesse campo: “A época 2019-2020 tem de ser a primeira (completa) das linhas certificadas e, com elas, a eliminação das dúvidas sobre lances de (potencial) fora-de-jogo”.

Para Rui Santos, outra das medidas que poderiam contribuir decisivamente com a melhoria do ambiente à volta das arbitragens prende-se com o distanciamento dos órgãos que regulam essa atividade em relação aos ‘grandes’. “Os departamentos de comunicação, que fazem uma pressão que já devia ter sido objeto de punições implacáveis; o posicionamento de alguns presidentes, que não se inibem de alimentar um ambiente de terrorismo verbal que não tem paralelo nas ligas mais desenvolvidas; e as próprias condições da arbitragem são alguns dos motivos para este clima de crispação constante”, ressalva, completando a ideia: “Defendo a autonomização total da arbitragem, fora da influência da Liga e da FPF. A arbitragem é – ou devia ser – uma coisa muita séria. É com ela que se salvaguarda, ou não, a verdade desportiva. É preciso debater a fundo as fontes de financiamento da arbitragem e criar um edifício próprio, autónomo, independente. A arbitragem não pode depender dos clubes, em nada, e o processo de classificações deve ser muito mais simples e objetivo, compreensível aos olhos da opinião pública, e não estar sujeito às influências dos clubes. Isto é fundamental”.

“Um espetáculo degradante” O comentador ouvido pelo i considera ainda essencial que os clubes percam poderes na aprovação ou reprovação dos regulamentos. “Banalizou-se o exercício da pressão e da coação e o futebol português entrou numa zona de bloqueio e de ingovernabilidade totais. As soluções passam também por um novo conceito na formação de dirigentes. Pinto da Costa e Filipe Vieira podem ser muito importantes para os seus clubes e respetivos adeptos, mas têm sido destrutivos para a integridade do futebol, ou por ação, ou por omissão. Como o foi Bruno de Carvalho”, realça.

A quantidade incessante de polémicas não desvia Rui Santos das suas convicções. “Se pudesse recuar, voltaria a fazer uma campanha a favor das novas tecnologias e da introdução da figura do VAR, mas de uma forma ainda mais ativa e sustentada. Sempre disse que a arbitragem está longe de ser o principal problema do futebol português. A arbitragem tem de se autonomizar, fazer a sua própria seleção, separar o trigo do joio (ainda há algum joio) e investir na formação dos VAR”, defende, pedindo ainda uma mudança de atitude dos ‘grandes’ a nível comunicacional: “Tweetar e emitir comunicados à velocidade do que hoje acontece, por causa de um alegado erro de arbitragem, é uma coisa do terceiro mundo. O VAR é indispensável, mas sobre essa figura é preciso inovar, melhorar o protocolo, etc. O VAR veio para ficar, embora fique muito difícil combater uma mentalidade retrógrada, canhestra, castradora e, de certa forma, fascizante. Os clubes dominantes (FC Porto e Benfica) precisam de rever as suas políticas de comunicação, mas temo que, até final da temporada, continuemos a assistir a um espectáculo degradante, que envergonha o nosso futebol.”

Para a uefa, tudo está perfeito O VAR, entretanto, chegou ao Mundial e às provas da UEFA e foi-se consolidando um pouco por toda a Europa: nas grandes ligas, só Inglaterra não aderiu esta temporada, mas fá-lo-á na próxima, com as imagens a ser mostradas nos ecrãs gigantes dos estádios, de modo a trazer clareza e transparência total para os espectadores. Uma medida, refira-se, desencorajada pela UEFA, que no regulamento da Liga dos Campeões dedica um artigo, o 35.º, a este tema. “As imagens estão proibidas se forem consideradas controversas, tendo em conta o seu potencial para encorajar ou incitar qualquer tipo de desacatos nas bancadas”, pode ler-se.

Tal como em Portugal, já agora: a alínea c) do artigo 96.º do regulamento de competições da Liga diz mais ou menos o mesmo. “As imagens em ecrãs gigantes devem respeitar apenas e somente a aspetos positivos do jogo (…). Não se podem transmitir quaisquer incidentes controversos e negativos, incluindo atos de qualquer jogador ou oficial, que possam incitar negativamente os espectadores ou provocar o descrédito do jogo”, é referido.

Por agora, a UEFA e a FIFA estão completamente satisfeitas com o sistema, como se pode perceber pelas declarações de Roberto Rosetti, o responsável pela arbitragem do organismo, no passado mês de fevereiro, após a conclusão dos oitavos-de-final da Liga dos Campeões – onde se utilizou pela primeira vez o sistema nas competições europeias. “A tecnologia funcionou exemplarmente e as equipas de arbitragem tiveram um desempenho muito elevado. Isso mostrou que todo o trabalho que desenvolvemos valeu a pena”, referiu o antigo árbitro, dando como exemplo de boa avaliação um lance de Pepe no jogo do FC Porto com a Roma, numa jogada de potencial mão do central dos dragões: “A verificação posterior realizada pelo VAR mostrou que o incidente ocorreu fora da grande área, por isso o VAR não interveio e o jogo continuou. Isto está de acordo com o protocolo, que só permite que o VAR intervenha em quatro situações de jogo”.

Estas situações são as seguintes: golos (quando há uma falta ou fora-de-jogo num lance de golo); penáltis (numa decisão errada na atribuição ou não atribuição); expulsões (sempre que o árbitro não utilize o cartão vermelho na ocasião devida); ou identidades trocadas (quando o árbitro sanciona o jogador errado). “Mínima interferência, máximo benefício. O sistema do videoárbitro está a ser introduzido no futebol para apoiar as decisões do árbitro principal. Este sistema tem a função de ajudar a corrigir decisões claramente erradas em momentos-chave do jogo, bem como em situações graves que tenham passado despercebidas à equipa de arbitragem”, pode ler-se no site da FPF.

“É como um airbag: pode ajudar em caso de urgência” “O VAR é como um airbag: pode ajudar em caso de urgência, mas unicamente em caso de verdadeira urgência”, referiu o ex-árbitro suíço Urs Meier, frisando que o objetivo do VAR não deve ser o de melhorar a arbitragem, mas unicamente o de eliminar erros gritantes, e que este não pode tomar nenhuma decisão: essas cabem exclusivamente ao juiz principal. “O assistente de vídeo possibilitou uma queda de três vezes no número de erros com impacto no resultado de uma partida”, disse Pascal Garibian, diretor técnico de arbitragem em França.

Numa análise sobre a utilização do VAR no campeonato português divulgada em dezembro passado, o Conselho de Arbitragem (CA) da FPF detetou, no primeiro terço da I Liga, apenas nove erros num total de 639 verificações. “Nas primeiras 11 jornadas foram efetuados 639 ‘checks’, distribuídos da seguinte forma: lances de golo (295), possível cartão vermelho (152), possível penálti (187) e erro de identidade (5). Dos 639 lances analisados, 33 resultaram em momentos de revisão. No seguimento da revisão, 8 decisões iniciais mantiveram-se e 25 foram alteradas. Das 33 revisões, 23 levaram o árbitro a visionar o monitor no relvado. Nessas 23 ocasiões, o árbitro decidiu alterar a decisão inicial em 16 casos”, referiu o CA. No passado dia 2, o jornal O Jogo revelava ainda um estudo onde concluía que a média de penáltis por jogo na I Liga subiu 22 por cento desde a introdução do VAR.