Estamos no Tempo da Quaresma. Para muitos, este é um tempo que não faz soar nada, não tem significado e até desconhecem o que representa. Para mim, faz-me lembrar os meus avós e o respeito que eles tinham por estes quarenta dias que medeiam a Quarta-feira de Cinzas e o Domingo de Ramos.
Até há umas décadas atrás, os 40 dias que antecediam a Páscoa tinham uma vivência muito mais profunda, que envolvia uma preparação interior individual, do que os dias do mês de dezembro. Com o passar do tempo, fomos transferindo para outra época do ano, neste caso aquela em que se celebra o nascimento de Cristo, as nossas energias e empenho. Em novembro, começamos a antecipar a festa do dia 25 de dezembro. A estranheza surge quando todos estão convidados para este aniversário, mas poucos são os que vão por adoração ao aniversariante. Um sinal dos tempos. Vão pelos comes e bebes e porque não querem ficar de fora, indiferentes à celebração, ao Menino que há mais de dois mil anos nasceu numa manjedoura e à Mensagem que trouxe consigo.
Hoje valorizamos o exterior, as luzes, o barulho, as cores, o dia-a-dia, tudo o que é imediato. Mas sentimos falta de muito mais. Dentro de nós cresce uma inquietação que vem de um vazio crescente, acompanhada por uma voz em surdina que nos sussurra a todo o tempo que não cuidamos do que está para além do palpável. Chamemos-lhe energia, ou halo, ou outra palavra qualquer. Refiro-me ao nosso equilíbrio interior, à força que nos move quando tudo parece perdido; uma disciplina que vem de dentro, dando forma aos nossos filamentos internos, e que nos abastece de uma densidade robusta que transparece na nossa humanidade.
Não é à toa que somos consumidores ávidos de formações de coaching, procurando o desenvolvimento pessoal nas experiências dos outros, ao fazer uma importação direta do que o orador explica para uma sala cheia de pessoas, numa tentativa de acalmarmos a nossa voz interior que vai aumentando de volume.
O Tempo da Quaresma, como muitos se recordarão, é quando nos propomos a renunciar ao que mais gostamos por quarenta dias, ou nos entregamos às orações diárias, ou convocamos a nossa generosidade e bondade para servir quem mais precisa. A primeira vem de encontro à nossa autodisciplina e põe à prova a nossa capacidade de priorizar o essencial sobre o frívolo que se acumula nos nossos dias – um teste à nossa força interior, ao assumirmos um compromisso com nós próprios e no qual somos os únicos habilitados a julgar o nosso cumprimento; a segunda, é uma escolha do foro mais íntimo; a terceira escolha tem um carater altruísta, é a personificação da abnegação e da consciência material da realidade que nos circunda. A beleza destes propósitos, pela sua simplicidade, devia fascinar quem tenta, diariamente, impor um quadro de regras internas que favoreçam a consolidação de um crescimento interior, em dinâmica permanente.
Creio que, simplesmente, caiu em desuso esta prática, tal como o deixar de ir à missa, entre outras. Em Portugal, os católicos representam 88,7% da população total, correspondendo a 9,183 milhões de pessoas que se identificam com a Igreja Católica.
Quando ouvimos os muitos que falam sobre o catolicismo no nosso país, ficamos com a ideia de que quase que somos uma minoria. Estes números atestam exatamente o contrário, que somos a esmagadora maioria, reservados na nossa confissão. Tão reservados que nos chegamos a esquecer das práticas que nos foram passadas pelos nossos pais e avós. Praticantes? Não, mas isso não quer dizer que não comunguemos os mesmos princípios e valores cristãos e que, perante a adversidade, as nossas referências sejam as mais benévolas e exemplares.
Às vezes também me esqueço, mas, felizmente, já tenho quem me recorde do tempo em que estou: Tempo da Quaresma.