Num dos primeiros dias de março de 1996, no final do segundo mandato de Mário Soares como Presidente da República – era eu chefe da sua Casa Civil e seu porta-voz há dez anos –, cerca de uma dúzia de jornalistas que tinham feito a cobertura das actividades do PR ao longo dos mandatos ofereceram-me, de surpresa, um jantar de singela homenagem num restaurante da Calçada da Ajuda, mesmo em frente da entrada para o Pátio das Damas do Palácio de Belém. Objectivo: exaltar a minha incompetência, a minha total incapacidade de comunicar com eles, a minha manifesta falta de perspicácia e de experiência políticas, sem o que eles nunca teriam atingido o tão elevado grau de competência profissional que os fazia muito respeitados nas redacções dos diferentes órgãos de comunicação social. E por isso me agradeciam penhoradamente, o que me comoveu até às lágrimas.
Foi então que dei por mim a perguntar aos meus botões, já não me lembro se do casaco, da camisa ou das calças, como teria sido possível que Mário Soares – meu tio por afinidade resultante do casamento com Maria Barroso, irmã do meu pai – não se tivesse apercebido, desde que cheguei a Lisboa com 15 meses de vida, vindo de Roma, que a família estava perante uma criança estúpida, incompetente e mesmo mentalmente retardada. Todavia, é certo que Mário Soares passou cerca de quatro décadas da vida de ambos a confiar neste seu nepote, nas mais diversas circunstâncias, antes e depois do 25 de Abril.
Nem se imagina até que ponto foi tal confiança. Tinha eu 15 anos e pediu-me que batesse à máquina (de escrever) vários manifestos da oposição democrática. Tinha eu 17 anos, já a iniciar o curso de Direito, e ele, além de me contratar como regente de estudos, nomeou-
-me bibliotecário da magnífica biblioteca dos alunos do Colégio Moderno. Tinha eu 23 anos e ele, mal tinha chegado da deportação em São Tomé, incitou-me a aderir à Acção Socialista Portuguesa, embrião do PS de que eu iria ser, em 1973, um dos fundadores. Logo a seguir ao 25 de Abril, estava eu a acabar de cumprir o segundo ano de serviço militar obrigatório, e Mário Soares teve o topete de me convidar a acompanhá-lo, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, como director dos Serviços de Informação e Imprensa do MNE. Passados dois anos, em 1976, era ele primeiro-ministro do i Governo Constitucional, e incumbiu-me – é certo que por insistência do Vítor Cunha Rego, seu secretário de Estado – de proceder à reestruturação da Presidência do Conselho de Ministros, nomeando-
-me secretário-geral da PCM. Um ano depois, já estava a convidar-me, com grande urgência, a desempenhar as funções de seu chefe de gabinete, ainda durante o i Governo constitucional e, a seguir, durante o ii Governo – baseado numa coligação nada airosa entre PS e CDS. Alguns anos depois, em 1983, resolveu nomear-me – apesar das minhas reticências, mas também por insistência de Jaime Gama e Eduardo Pereira, seus ministros, e com anuência imediata de Mota Pinto, seu vice-primeiro-ministro – secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros do ix Governo Constitucional, famosa coligação “patriótica” entre PS e PSD, cuja corda seria roída por Cavaco Silva mal se viu presidente deste partido e mal viu que o país já estava a salvo da crise e à beira de “toneladas” de vil metal oriundo da CEE (hoje UE). Destruído esse Governo por Cavaco Silva e Ramalho Eanes, Mário Soares pediu-me que eu fosse seu chefe de gabinete na sua primeira candidatura a Belém, em 1985-1986, incumbindo-me de coordenar a propaganda da campanha. Eleito Presidente da República, após uma campanha inesquecível, atreveu-se a convidar-me para ser o chefe da sua Casa Civil e seu porta-voz oficial – coisa que durou dez anos, entre 1986 e 1996.
Sim, não me esqueço que também houve a terrível experiência política que foi a terceira candidatura a Belém, em 2005-2006! É claro que só pode ter sido a minha incompetência, incapacidade e estupidez natural que causaram a derrota de Mário Soares, como ainda por aí sugerem, à boca pequena, alguns “génios” que coleccionaram tachos à sua custa. Mas isso são contas de um rosário que jamais desfiarei, a menos que algum desses “génios” se atreva a pôr os “pauzinhos” de fora, no que eu não acredito…
Mas é verdade que eu – Alfredo José Somera Simões Barroso, nascido em Roma (Itália) filho duma jovem e bela italiana (natural de Treviso) e dum jovem matemático português (natural de Montes de Alvor) a preparar o seu doutoramento na Universidade de Roma – sou o exemplo ideal de “nepotismo” familiar, por ser mesmo nepote (e meio italiano!), ainda que por afinidade, do famoso político Mário Soares. É que sobrinho, em italiano, diz-se nepote (tal como em latim) e o estigma até começou por ser, historicamente, o de “sobrinho do Papa” (seu favorito, seu preferido, seu valido). E daí a pergunta: terá sido ilegítimo e indecoroso Mário Soares ter nomeado este seu nepote por afinidade para os cargos públicos e políticos acima desfiados? Não teria sido bem melhor que Mário Soares tivesse nomeado para tais cargos um jovem moralista da estirpe dum Savonarola (como, por exemplo, um político histrião como o eurodeputado Paulo Rangel, ou um publicista toleirão como João Miguel Tavares, ou mesmo um humorista “amigalhaço”) em vez de nomear o seu sobrinho meio italiano? Não sei. Só sei que, nos dois casos em que preferiu nomear outrem, para evitar a acusação de nepotismo, acabou, às tantas, por ter de apelar à minha incapacidade e incompetência políticas e à minha estupidez natural….
Uma coisa só agora fiquei a saber e tenho pena de não ter sabido antes: foi que, em todos os Governos da direita que estiveram no poder desde 1979, não houve um único em que ministros, secretários de Estado e membros dos respectivos gabinetes se conhecessem, fossem amigos e da confiança uns dos outros. Qual quê? Nem sequer eram familiares ou amigos no partido! Por isso é que levavam tanto tempo a carburar politicamente pois que, primeiro, convinha conhecerem-se e estreitarem relações de confiança, cumplicidade e amizade entre si, o que dava uma trabalheira e enorme dispêndio de energias…
Será por isso que os portugueses gostam tanto desta gente de direita? É que, quando tem de formar Governo e preencher os gabinetes dos ministros e secretários de Estado, a direita incumbe vários pescadores de talentos de fazerem pesca à linha, empoleirados no cimo de monumentos aos nossos egrégios avós, para assim fisgarem os ilustres desconhecidos que irão governar, respeitando a moral e a transparência…
Caros jornalistas, sobretudo moralistas, e histriões prenhes de ética política, atrevo-me a sugerir que, na vossa enérgica luta contra este Executivo sustentado pelo “esquerdalho”, se virem algo mais para o sexo! Atenção, não me interpretem mal. Estou só a sugerir que se exerça mais vigilância sobre a vida sexual e os parentescos dos membros do Governo, identificando filhos, enteados, sobrinhos, netos, etc. Urge defender o patriótico e virginal trabalho que a direita, a convite da troika, andou a fazer durante um lustro, exigindo – e bem! – que nos desnudássemos e todos passássemos a andar de tanga!