Em defesa da família e da amizade


É evidente que esta concentração de amigos e amantes no topo do poder cria uma asfixia da crítica e do contraditório, uma enorme cumplicidade nas decisões tomadas e na ocultação dos problemas.


Havia em Portugal, no último quartel do séc. xiv, dois rapazes amigos. Um chamava-se João, era filho ilegítimo do Rei D. Pedro e de uma senhora filha de um comerciante da praça de Lisboa; o outro chamava-se Nuno, filho da boa aristocracia portuguesa.

Em 1383, o primeiro tinha 26 anos, o segundo, 23. Juntos quiseram «grandeza Qual a Sorte a não dá», mas a sorte deu. Vencida Castela na crise de 1383- 1385, João tornou-se Rei de Portugal e fundador de uma nova dinastia, a de Avis; Nuno, o Condestável, veio a ser o mais titulado e rico homem do reino. Dizia- -se dele que era dono de meio Portugal.

Donos do novo regime, decidiram casar os filhos, Afonso do primeiro e Beatriz do segundo, tendo os rebentos contraído matrimónio em 1401, para fundar a casa de Bragança, de que Afonso, filho ilegítimo de João, filho ilegítimo de Pedro e neto de um mercador de Lisboa, foi o 1.o duque, sendo sua duquesa a Beatriz, filha de Nuno e de uma senhora minhota, da família Alvim.

É assim que funciona a endogamia, em Portugal e noutras paragens, mas esta história é do virar do séc. xiv para o séc. xv.

Neste nosso séc. xxi, que na ficção científica seria o da odisseia do espaço e dos carros voadores, verificamos que a sociedade portuguesa se pauta e mantém pela endogamia social.

Curiosamente, é hoje muito mais raro encontrar casos de endogamia nas elites económicas (não que não os haja) do que nas elites políticas. Há também casos de endogamia entre as elites económicas e as políticas, em que um filho de um alto dignitário do PS casa com um de um alto dignitário e milionário abonado do PSD… Há de tudo.

Trata-se aqui de um processo fisiológico, natural, em que as elites afuniladas nos mesmos corredores do poder se encontram em permanência e se conhecem bem.

Este fenómeno é extraordinariamente prevalente nos partidos políticos: há casos para todos os gostos, sendo frequente irmãos, ao mesmo tempo ou em momentos diferentes, desempenharem altas funções políticas, ao serviço do mesmo partido, até gémeos, maridos e mulheres, pais e filhos, tios e sobrinhos, primos numerosos, sem distinção de esquerda ou direita, radicalismo ou moderação. Há em todos os partidos e para todos os gostos.

Mais difíceis de avaliar são as situações de amantes, de sexo oposto ou do mesmo. Nestes casos, como raramente são assumidas as preferências e muito menos as “amizades”, ficamos sem saber exatamente a que se devem certas ascensões meteóricas e sucessos inexplicados. Maçonaria, ou …?

Mas também os amantes de sexo oposto são difíceis de identificar, porque não há registo de matrimónio para verificar, apenas rumores. Tudo isto é opaco, mas a verdade é esta: muita gente, cada vez mais, parece dever a sua proximidade do poder à família, às amizades coloridas, a intimidades por desvendar.

Dizer que isto é normal e saudável é mentir. Não é. Não que aconteça só em Portugal, porque acontece em muitos lados: já vimos nos Estados Unidos filhos a suceder aos pais na Presidência, mulheres a pretender tomar para si o manto do poder que era dos maridos, famílias de vários irmãos envolvidas no mesmo governo. Já vimos nos EUA e, com cuidado, vemos por todo o lado.

Calha que o nosso país é pequeno e muita gente se conhece, e torna-se mais notório porque é num meio mais concentrado, mas não é por ser um fenómeno difundido que se torna mais aceitável. A verdade é que esta concentração de poder em tribos de amigos, parentes e aderentes tem consequências terríveis para a qualidade da nossa democracia.

Frequentemente, e as últimas novidades sobre o Partido Socialista são apenas um caso extremo da doença, as listas de deputados são apenas as listas de amigos do chefe e dos subchefes – como escrevia alguém, a lista de convidados para os anos do chefe…

É evidente que esta concentração de amigos e amantes no topo do poder cria uma asfixia da crítica e do contraditório, uma enorme cumplicidade nas decisões tomadas e na ocultação dos problemas.

O pior disto é que quem não faz parte da tribo, quem critica ou duvida, quem expõe em público é visto como um inimigo, alguém que não é da tribo, que tem de ser expulso. Pelo contrário, dos da tribo espera-se a anuência automática, a concordância pronta, a defesa contra todos dos pontos de vista do chefe.

A recompensa é a permanência no poder e o acesso irrestrito a todas as prebendas que o poder confere. O castigo dos críticos é o exílio interno, a expulsão do paraíso.

Isto conduz a uma tribalização da vida política, a uma asfixia da vida democrática, à falta de alternativas internas dentro dos partidos, reduzidas que ficam à estreita margem dos amigos e amantes que partilham entre si os topos da democracia. Isto é bom? Não, é péssimo.

Esta a razão pela qual os partidos políticos, de esquerda e direita, em Portugal abominam a ideia de haver candidatos independentes.

Já ficou provado nas câmaras municipais que o princípio das candidaturas independentes é uma coisa excelente para pôr um travão aos caciquismos partidários. Estamos à espera de quê para introduzir esse sistema nas listas de deputados?

Até pode ser que a introdução de círculos uninominais já e de candidaturas independentes logo que a Constituição o permita não ponha um termo aos Joões e aos Nunos e respetivos filhos, não acabe de vez com o nepotismo e o amiguismo na vida politica, com o caciquismo partidário. Pode ser mas, como dizia o outro, “vota no Tiririca, que pior do que está não fica”. Quer dizer, ‘bora lá experimentar uma coisa nova, a ver se resulta? Pode resultar e, se resultar, pode mudar o país para muito melhor.

De uma coisa os nossos maridos e mulheres, amigos e amantes, pais e filhos e primos e sobrinhos que acham que mandam no país podem ter a certeza: ou isto muda a bem, ou um dia muda a mal. O que preferem?

 

Ex-secretário de Estado da Justiça

Advogado, subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade” por uma democracia de qualidade