Daniela Antão. “Curar um cancro vai mais além do que curar a doença do corpo”

Daniela Antão. “Curar um cancro vai mais além do que curar a doença do corpo”


“Crónica de Uma Ressurreição” é lançado esta quinta-feira no Segundo Muelle, em Lisboa  


Quando fez 40 anos, Daniela Antão recebeu um presente envenenado: o diagnóstico de um cancro da mama. Primeiro, pegou no computador para deixar instruções por email para o caso de ter apenas alguns meses de vida. Depois recompôs-se e, durante o mês que mediou o diagnóstico e a operação, decidiu lutar com todas as armas que tinha à mão. Correu para ficar forte para o embate, recorreu à medicina chinesa para a ajudar a desfazer os nódulos e descartou quem lhe trazia más energias. E fez perguntas, muitas, ao longo de todo o processo. Mais tarde, já no pós-operatório, recusou tomar um medicamento porque, contas feitas, a probabilidade de as drogas lhe provocarem um cancro no útero eram superiores às de uma eventual morte. Assumiu o risco, continuou o seu caminho e iniciou aquilo a que chama de uma verdadeira revolução interior. Durante todo o processo foi escrevendo e partilha agora nesta “Crónica de Uma Ressurreição” (Ed. Ideia Fixa) um outro olhar sobre a doença, a cura mas, acima de tudo, sobre a forma como vivemos. O cancro, afinal, não foi uma sentença, mas antes uma oportunidade. Hoje está curada – e explica-nos porquê – mas ainda guarda na carteira o resultado da biopsia. Uma lembrança da efemeridade da vida.

Quando ficou doente e lhe surgiu a ideia de escrever o livro, em que processo é que já estava?

Fiquei doente em dezembro de 2012, exatamente quando fiz quarenta anos. Fui operada em janeiro de 2013. Só voltei a conseguir abrir um computador vários meses depois. E mais ou menos um ano depois comecei a escrever. 

E quando começou a escrever foi de alguma forma para exorcizar o que lhe estava a acontecer, foi uma forma de catarse, se foi simplesmente para não se esquecer ou se pensou logo em escrever um livro?

Bem… sim e não. Houve algumas coisas que escrevi e que não vieram necessariamente para este livro e que serviram de catarse, mesmo. Mas a maior parte foi já com o intuito de contar esta história a outras mulheres e homens e senti mesmo o dever de o fazer. Depois de viver aquilo que vivi e como vivi, e aquilo que aprendi sobre o sistema e sobre mim, achei que tinha a obrigação de passar a palavra. Mas depois isto ficou na gaveta muitos anos. 

E porquê publicar agora, qual foi o gatilho?

Como em tantas coisas na vida os acasos acontecem. Este livro é publicado agora pela mão do Pedro Santana Lopes.

Em que medida?

Conhecemo-nos há pouquíssimo tempo, há uns meses só. Fui colega de curso da mulher do Pedro, a Dina Vieira, que é uma mulher fabulosa. E quando o Pedro lançou o Partido escrevi à Dina a dar os parabéns e a dizer que se precisassem de alguma área em que eu pudesse ser útil para contar comigo. Conheci então o Pedro e começámos a conversar sobre a vida e há um dia que lhe deixo o meu escrito em cima da mesa. Nesse dia ele leu tudo e disse umas palavras simpáticas e incentivou-me para que estas ideias chegassem ao prelo.


Fotografia de Mafalda Gomes

Como descobriu que tinha cancro, começou a sentir-se mal?

Não, estava a conversar deitada. Gesticulo a falar e de repente pouso a mão em cima do peito e sinto uma coisinha. Foi assim. E de repente gelei, enfiei a mão por baixo da camisa de noite, e pensei: se calhar isto é uma costura da camisa de noite, e senti que era debaixo da pele. Era a última doença que achava que podia ter, porque não havia histórico nenhum na família, eu já tinha deixado de fumar há um ano…

Não tinha sequer o hábito de fazer palpação?

Acho que fazia sem grandes dramas, mas acho que passava um bocadinho ao lado.

Há aqui uma parte em que diz que nunca pensou que pudesse ter cancro porque nunca pensou que pudesse estar a ser autodestrutiva. Considerava-se uma pessoa enérgica e positiva, para depois vir a assumir que as pessoas positivas são as piores porque camuflam tudo. 

Acho que as pessoas fortes e muito lutadoras, que têm uma grande capacidade de resistência, acabam por não viver a dor e o sofrimento. Arregaçam as mangas e lutam sempre. Podem estar cheias de escaramuças, mas não param. E de repente pode estar algo a acontecer em surdina – porque aguenta-se as frustrações, as contrariedades, as desilusões – e tudo isso faz mal à saúde. Mesmo.

E no seu caso estava a fazer isso, teve esses momentos na sua vida?

Sim. Fui-me acomodando. Fui-me esquecendo. Mas não tinha a noção disso. Acredito que há, pelo menos no meu caso, agressões de natureza emocional e agressões físicas ou químicas ou materiais que procuro explicar. O cancro é um exacerbamento de um processo inflamatório. Não sou especialista nem tenho essa pretensão, nem procurei armar-me em Dr. Google. Há um modelo de vida que acredito que agora até esteja a ser posto em causa pelas gerações mais jovens que assenta em estudar, ter as melhores notas, entrar no mercado de trabalho, afirmarmo-nos, depois há o projeto de família, e aquela Daniela que somos e éramos e aqueles momentos de prazer de deleite, da realização pessoal, não preocupados com aquilo que se atinge ou que se prova aos outros, vão cada vez sendo menos.

Diz então que fez tudo isso para cumprir a norma…

Na verdade, que é como concluo o livro, nós vamo-nos corrompendo, às vezes desde a infância! A sociedade está demasiado castradora e nós temos um modo de vida muito desgastante e é muito difícil resistir a esta pressão toda. Mas depois há inúmeros fatores, inúmeras fontes de frustração, de desistência de nós.

Depois de passar por isto sentiu que antes estava mergulhada num caldo numa panela de pressão?

Não sabia que estava nesse caldo de pressão até que um dia o meu corpo disse: “Assim não dá mais”. É literalmente isso. Não quero entrar por terrenos esotéricos, mas acredito que vamos tendo avisos mais suaves na vida e que quando recebemos um pontapé destes é porque não percebemos nada antes. Há uma inteligência do universo em que vivemos, que vai comunicando connosco. Não me queria consciencializar até que o corpo me fez fazer uma pausa total na vida, que foi quando apareceu a questão: então mas eu posso morrer daqui a nada?

Este quanto tempo parada?

Foi uma pausa no sentido mental do termo. De repente para tudo: o filme corria alegremente e stop. Isto faz mudar tudo, pensar em tudo. Naquele momento claro que não pensei nos aspetos emocionais – esse é um processo. Nesse momento pensamos: o que vou fazer para me curar?

Explica no livro o que fez e conta que nunca se demitiu do que fariam ao seu corpo. Há pessoas que simplesmente não querem saber porque processos vão passar, no seu caso teve a reação oposta. Porquê?

Por medo. O medo é tremendo. Nós temos medo de morrer e quem é que nos pode salvar? Os médicos, eles é que são os donos do saber. Eu tenho a minha profissão, sou advogada, e um leigo pode não confiar cegamente naquilo que lhe disser. É muito difícil vencer o medo. A atitude de querer perceber, querer estar ao corrente, questionar, é uma atitude de contrariar o medo. Tendo conhecimento do que os outros que sabem que estão a decidir sobre nós, podemos perceber se faz ou não sentido, ou até que ponto faz sentido. Isso na minha história foi determinante… em Coimbra disseram-me que tinham que me fazer uma mastectomia conservadora. Primeiro eu rendi-me, e estive umas horas num sofrimento enorme, e depois quis perceber porquê. Quando me voltei a sentar com o médico perguntei: e quando ele me faz o desenho dos canais eu perguntei – então porquê cortar tudo e não o recheio? Estas perguntas foram fundamentais. E depois há outra coisa – uma coisa é o conhecimento, outra é a dose de risco que se quer assumir. Há pessoas que podem dizer corte tudo, dê-me tudo: radioterapia, quimio… Há aqui também uma ponderação que cada um deve fazer de acordo com a sua sensibilidade. Tive pessoas próximas que ficaram muito preocupadas por eu não querer tomar tamoxifen. 

Tomou logo algumas decisões para lutar contra este cancro. A primeira foi correr, a segunda foi procurar também a medicina tradicional chinesa. Porquê?

Antes disto, na verdade, não corria muito. Só esporadicamente. Mas a corrida permitia-me ter um momento de escape, de solidão e controlar a tensão. A atividade física tem um poder extraordinário sobre a nossa autoconfiança. Ao corrermos, e aguentarmos aquela primeira parte em que o coração pára que não dá, e depois as pernas, e faz-se uma pausa e vamos outra vez, isto dá uma sensação de poder que é inebriante. Precisava absolutamente daquilo naquela altura. Como conto no livro, chorava e corria. E claro que suava e, ao mesmo tempo, meditava. Questionava-me, às vezes ficava furiosa, outras vezes limitava-me a pensar: olha, estou a ouvir o meu coração a bater, os meus músculos estão a funcionar. E portanto foi muito terapêutico mentalmente e deu-me imensa força física e mental. Não sei explicar, mas sei que nós produzimos endorfinas que alteram o nosso estado mental. 


Fotografia de Mafalda Gomes

Não é toda a gente que, quando lhe é diagnosticado um cancro, decide começar a correr.

Talvez não, mas a verdade é que não faz mal a não ser que a pessoa tenha alguma debilitação. Mas é verdade o que está a dizer. E antes que todos fizessem. Se calhar iam contribuir para uma cura celular muito maior.

O mais comum é vermos as pessoas fecharem-se sobre si próprias, ficarem em casa…

Não foi o que fiz de todo. Procurei muito o contacto com a natureza, estive muito junto de cavalos, ia muitas vezes montar. Correr, estar na natureza, tudo isso tem um poder extraordinário.

E a medicina tradicional chinesa? Já tinha recorrido antes?

Não. Tinha conhecido o Pedro Choy há 20 anos e já não o via há tanto tempo quanto isso. Quando recebi esta notícia, além de ter aberto o computador para mandar uns e-mails para o caso de morrer daí a uns meses…

Fez mesmo isso?

Fiz! Avisei o meu gestor de conta, disse-lhe o que podia acontecer e dei-lhe uma lista de coisas para fazer. Ainda hei de ter esse email, mas não o quero procurar. E depois logo a seguir parei para pensar e abri todo o leque de possibilidades. A juntar à medicina ocidental, ao acompanhamento de um oncologista, resolvi tratar de tudo. Liguei ao Pedro Choy a dizer o que tinha e a pedir ajuda para dissolver os nódulos. Não sabia nada sobre o tema, mas acreditava.

E teve efetivamente uma diminuição de nódulos que ninguém estava à espera.

Pois, esse é um tema central do meu livro e pelo qual eu talvez possa ser muito atacada por uns. 

Entre o diagnóstico e essa diminuição passou quanto tempo?

A um determinado momento faço uma ressonância magnética onde foram observados doze nódulos pela equipa de médicos que observou as películas. Está no relatório. Passa-se um mês e dia 17 de janeiro eu sou operada. Eles tiram a glândula mamária, cortam às fatiazinhas e mandam para o laboratório para analisar – a peça, é como se chama. E é daí que vem a informação relevante para o pós-operatório. E esse relatório que veio do laboratório dizia que tinham sido encontrados três nódulos. Ou seja, passou um mês entre a ressonância e a operação e a análise à peça. Portanto desapareceram nove, 75%. A medicina chinesa tem várias áreas, uma delas é acupuntura, outra é fitoterapia que é uma medicação natural há base de plantas. E há esta máxima em medicina chinesa que diz que na natureza existe tudo o que precisamos para nos curarmos de tudo. Não tenho conhecimento técnico e isto é falando de uma forma simplista, teria que ser uma pessoa da área, mas como leiga sei que há uma fórmula de plantas que ajuda a dissolver massas. E é banalizada em medicina chinesa, tanto quanto sei há muita gente a resolver tumores, malignos ou não. Nem sei que adjetivo é que devo utilizar, e não quero usar criminoso porque não quero atacar ninguém, mas é… olhe é revoltante, inacreditável, irresponsável e mesquinho que esta informação não seja pelo menos divulgada a toda a humanidade. E depois cada um logo faz o que quer, ou toma ou não toma. Eu não advogo, e o Pedro Choy nunca mo disse, antes pelo contrário, que deixemos de usar todo o acervo de conhecimento médico. Isto é muito importante, não quero passar a mensagem errada. Se não fossem os meus médicos convencionais a fazer o que fizeram eu se calhar também não estava aqui. Agora, se existe uma possibilidade de certa terapêutica curar e poder evitar que mulheres ou homens sejam mastectomizados, porque é que isto não é do conhecimento de toda a gente e porque é que se nega aquilo que não se pode provar que seja falso? Nenhum opositor das medicinas ditas não convencionais – mas das conceituadas, das reputadas, porque as charlatanices é do pior que há e estragam os bons – com profissionais bem formados que aplicam estas terapêuticas, dizia eu, os outros ainda não provaram que eles estão errados. Isto agora é lógica aristotélica: se eles não provaram que estão errados, então é porque há uma hipótese de estarem certos. E esta hipótese não pode ser omitida da população.

Sentiu algum tipo de preconceito dos médicos por ter recorrido à medicina tradicional chinesa?

Nim. O médico com quem partilhei não fez nenhuma oposição, mas respondeu-me com um respeitoso silêncio sobre o tema, diria assim, o que achei bastante positivo para os dias que correm. Há muitos que não pensam assim, mas as duas áreas deviam começar a articular-se porque muitas vezes há profissionais das medicinas naturais que dão razão a alguma oposição do lado da medicina convencional, e não pode ser.

Há um lado que também sublinha muito no seu livro que é a necessidade de nos cuidarmos num processo de doença. No seu caso, passou o tempo a fugir do desleixo, e diz até que quanto pior a situação mais os adornos têm que nos puxar para cima. Qual foi a importância disto para si como mulher e como doente?

O nosso estado de alma é influenciado por muitas coisas e sensações. A forma como nos vemos ao espelho ou nos dá um sorriso de alegria ou a sensação de que não estamos bem. E portanto revestirmo-nos de coisas bonitas dá-nos um reflexo alegre e vai-nos influenciar o nosso estado de espírito, para nós e para os outros. Nego veementemente a trajetória negativa, da derrota. Não quer dizer que não tenhamos que viver a tristeza e a dor – temos que vivê-la mesmo toda. Há um momento para chorar, berrar e acharmos que estamos a ser injustiçados. Temos direito ao nosso momento calimero! Porém, temos que ver se estamos a controlar o tempo calimero. E para isso, correr é um forma, a roupa é outra. Quando fui para hospital levei lingerie muito bonita e apesar de estar toda esquartejada e cosida e com uns sacos cá dentro adorava ver-me bonita e gostava que olhassem para mim e vissem uma mulher bonita, apesar de estar toda esfrangalhada. 

E as pessoas à sua volta no hospital, ficaram a pensar mas que peça era aquela que foi para lá desfilar?

(risos) Acho que também não dei assim tanto nas vistas. Mas posso dizer que o meu médico depois me contou que foi muito comentada a minha atitude no bloco, que tinha sido uma doente com uma atitude muito positiva e que estava muito tranquila e comunicativa. Claro que às vezes o humor também é um escape para o nervoso. Às vezes vejo pessoas de quem gosto e queria ir lá dar-lhes um abanão mas nem sempre podemos interferir com o íntimo de cada um. E se este livro poder ajudar de alguma forma e der dicas… Por exemplo, esta da roupa, de cuidarmos de nós, algo que parece tão fútil mas que não é de todo.

Depois passou por uma fase em que toda a gente lhe dava conselhos, um verdadeiro tsunami de opiniões e que resolve então decretar o que chamou de “o cisma do cancro”.

Não foi muita gente, até porque e como eu digo mais para a frente do livro, um dos bons conselhos que recebi de um dos bons médicos que tive, logo o primeiro, foi ser discreta. Não é nada bom – é, aliás, péssimo – dizer a toda a gente. Depois pus isso nos sete mandamentos. As pessoas, mesmo movidas pelo desejo mais genuíno de ajudar, podem dizer as maiores barbaridades. Por exemplo, um amigo meu foi lá jantar a casa pouco depois da minha operação e dizia: “Sabes, o meu pai também teve, estava ótimo mas passado um ano teve uma recaída e nunca mais recuperou”. Sei que não foi com má intenção, mas é uma coisa… Depois há muita gente que é negativa. Imaginemos que o tipo de pensamento de cada pessoa é uma nuvem por cima da cabeça de cada um. Há pessoas que têm uma nuvem branquinha, outras que têm uma nuvem negra. Eu não quero isso! Houve muitas pessoas minhas conhecidas e ninguém soube de nada. Não é uma questão de ficarmos com vergonha e resolvermos tudo sozinhos, mas temos que escolher quem nos vai dar força. Essa história do cisma aconteceu porque havia uma pessoa próxima de mim e que teve alguma falta de jeito. Movida de boa intenção e de me fazer tomar determinado medicamento… aí eu disse: acabou, por aqui não vou mais. Acho que estava a fazer uma análise lúcida, mas não me digam que não posso levantar questões.

Falemos então dessas questões e de uma consulta que descreve com o oncologista, onde recusa tomar um medicamento, o que não foi bem recebido. Só seis meses depois tem um médico que a apoia nessa escolha, ou seja, esteve meio ano a ‘arcar’ sozinha com a sua decisão.

Para mim já não era tema. Enquanto estive no processo de decisão era tema, depois, na verdade, acho que me esqueci do assunto. Não estava nada à espera daquela validação, eu já tinha assumido que ia ser assim.

E quem estava à sua volta aceitou a sua recusa em tomar aquele medicamento, não tece nenhuma oposição ostensiva?

Sim, sim. E eu afastei-me dessas pessoas.

Mas eram familiares?

Era um círculo muito, muito chegado. Compreendo a posição deles.

Era um ato de amor.

Era, super bem-intencionado. Mas eu já tinha escolhido o meu caminho. Se calhar até estava igual ao que estou hoje. Quer dizer, igual não estaria porque teria antecipado a menopausa. Felizmente, depois disto sinto-me tão mulher, tão mais saudável do que era, porque ganhei humildade de perceber que tenho que respeitar o meu corpo. Antes fumava, comia mal, não queria saber. Diz-se que os adolescentes acham que são eternos e omnipotentes, e eu era assim. Mas o nosso corpo é sagrado. Devemos fazer o culto do corpo, não no sentido exibicionista do termo, mas devemos ter o culto quase de adoração do sagrado. Para já é um instrumento com um potencial extraordinário – estamos muito aquém de conhecer tudo o que o nosso corpo faz e o que a nossa mente consegue fazer com o nosso corpo. Ter um corpo são, forte, viçoso, é fundamental.

Quando disse ao tal oncologista que não ia tomar o medicamento que ele lhe estava a prescrever qual foi a reação? Sentiu que tinha diante de si um médico a fazer o seu trabalho ou alguém que a estava a ofender na sua liberdade? 

Ele estava a fazer o seu trabalho. Aquilo que me ofendeu foi a atitude de arrogância e de quase insulto relativamente às questões que eu lhe colocava. Ele dava por adquirido que eu não tinha o direito de pensar e de questionar e portanto sentiu-se indignado por eu exigir que ele me explicasse o porquê da prescrição do medicamento. Isto não é ser médico. Depois entrámos na análise dos dados. Mas sim, foi uma consulta surreal.

Hoje está livre da doença?

Essa é a vexata quaestio (risos). Passaram seis anos em janeiro de 2019 desde que fui operada. Aquele médico que eu lá descrevo disse que eu tinha uma doença para a vida. Este 17 de janeiro de 2019 chamei pela primeira vez um conjunto de amigas para vir celebrar o aniversario da minha operação. Até então eu passo pelo aniversário alegremente calada a dizer para mim: hum, já passou mais um ano. Digo, com confiança, que estou, sobretudo pelo conhecimento que tenho hoje de quando é que estou a colocar-me em risco ou não porque isto não é completamente aleatório. Sei que se me cansar muito, se me alimentar mal, estou a baixar o meu sistema imunitário e tudo pode acontecer. Há pequenos sinaizinhos: ou uma inflamação no olho, ou noutro sítio, que indicam que temos que dormir, temos que parar. Uma das coisas que aprendi é que não me posso esgotar fisicamente. Dito isto, este é o meu suporte objetivo para eu afirmar que estou curada. Não posso dizer que nunca voltarei a ter, mas posso dizer que agora sei como devo fazer para não adoecer e estou atenta. Se estiver atenta e cumprir o que tenho a cumprir, não me vai acontecer nada. Por isso é que a minha convicção de saúde não é um puro ato de fé irracional – tem um suporte muito fundamentado.

Pode dar exemplos?

Por exemplo, nunca mais na vida vou tomar a pílula. A pílula é feita de hormonas, progesterona e estrogénio, e isto é uma das coisas gravíssimas também da nossa civilização moderna. Nós queremos ter uma vida sexual livre, sem engravidar, mas a pílula aquilo que pode fazer é induzir na mulher um estado hormonal igual ao da gravidez. Pum! Eu não sabia isto. Este cancro que tive, que ao que parece é o mais frequente da mama, é matéria celular que se alimenta de… progestrona e estrogénio. Claro que o meu raciocínio foi deixar de enfiar doses astronómicas disso.


Fotografia de Mafalda Gomes

E continua a correr e a fazer medicina chinesa?

Vamos lá ver, não sou perfeita. Imensas vezes, como qualquer mortal, estou debaixo do peso do quotidiano. Mas hoje sei quais são os fatores de risco como, e sobretudo, iniciei uma revolução interior que ainda está em curso.Curar um cancro não é só curar a doença do corpo, essa é uma das mensagens muito importantes.

Mas continua com a mesma profissão, por exemplo, enquanto conta aqui no livro que sempre quis ser bailarina ou coreógrafa. 

Adoro Direito. Acho que não devemos ter uma vida profissional, onde passamos a maioria do nosso tempo, que nos frustre, que nos humilhe, que não nos deixe florescer no nosso potencial intelectual ou de realização porque isso depois começa a corroer-nos por dentro. Talvez a maior parte das pessoas não seja feliz não sua vida profissional. Como sociedade temos que repensar isso.

Então é feliz na sua vida profissional.

Está em construção, não está feito. Por isso é que digo que tudo começa no fim. Tratarmos do corpo, mas perceber que há várias outras coisas que vão para lá da profissão. Por exemplo, deixar de fazer cerimónia. Passamos a vida a fazê-lo: estamos com pessoas por cerimónia, não estamos com pessoas por cerimónia, dizemos que sim por cerimónia. Coibimo-nos, desde a infância, de dizer aquilo que sentimos, se gostamos ou não da prenda, se queremos ou não ir ali. 

E perdeu a cerimónia?

Logo após a operação eu sentia-me tão leve, mas tão leve… Deve ter sido a sensação mais próxima da infância que se pode ter na idade adulta. Era com uma simplicidade e uma tranquilidade que eu dizia a alguém “olha, não quero”… Deixamos de ter medo de magoar, porque a verdade torna-se no único valor. Depois, enfim, entramos em modo social e torna-se difícil. Mas… tenho na minha carteira o resultado da biopsia. Foi feita no dia 10 de dezembro de 2011, chegou no dia 11, o dia dos meus 40 anos. 

Mas porque faz questão de ter sempre consigo esse resultado?

Porque quando me armo em parva e fico tensa com as coisas do dia a dia, com o trabalho, com as contas, com o que for, vejo o papel. No dia em que o recebi eu disse que se calhar ia morrer. Por isso, hoje este resultado é para me disciplinar.

Tem três filhos. Eles viram alguma diferença na mãe antes e depois deste processo?

Eles na altura não souberam. O mais velho (hoje tem 18 anos) sentiu que havia ali alguma coisa. Mas acho que fui mais eu que mudei a mensagem para eles e tentei ensinar-lhes mais sobre o que é importante na vida. Aprendi a controlar aqueles momentos de stress com aquilo a que os americanos chamam de mindfulness, que é a forma comercialona de venderem a espiritualidade antiga. Os meus filhos só souberam passados vários anos, já quando se podiam sentir seguros de que a mãe deles não estava em risco e têm sido extraordinários. Veem a mãe de sempre, mas têm uma forma… parecem pessoas maduras. 

E como é que a sua recente entrada na política se coaduna com esta nova Daniela?

Bem, diz-se que nada acontece por acaso, mas neste caso foi mesmo por acaso. Tive aquela atitude espontânea que contei no início – vi o Pedro Santana Lopes criar um partido novo e ofereci-me para ajudar. Tenho uma admiração pelo Pedro, acho que é um homem corajoso que enfrenta alguns poderes instituídos menos sãos e tem trabalho feito e comprovado, e da minha observação politicamente interessada desde que sou gente adulta, como cidadã que apenas vota, era a de que ele é um homem que enfrenta interesses instalados de uma forma corajosa. Quando ele teve a coragem de fazer um partido fui ver a declaração de princípios, o ADN do Aliança, e indentifiquei-me. Primeiro, o pensamento liberal: eu acredito que a liberdade é a única forma de sermos seres humanos felizes, e tudo quanto são modelos de paternalismo sobre o indivíduo para mim são abomináveis. O liberalismo não é só económico – é a liberdade de pensamento, da organização cultural. Isto com solidariedade, aliás, há até uns TED Talks fabulosos que mostram através de imagiologia ao cérebro que nada dá mais felicidade ao ser humano do que dar amor a outro. E eu tive essas experiências, sobretudo depois deste trauma que despertou muito mais os meus sentidos de observação. E depois o personalismo. Estes valores são meus, é como sinto que devemos viver e organizar as nossas sociedades. Então disponibilizei-me. O projeto é novo, com muitas pessoas sem passado político ativo a juntarem-se e de repente é um espaço extremamente desafiante porque o pensamento, as ideias para o país, estão a ser formadas.

E ficou logo como diretora do gabinete de estudos? O que faz concretamente?

Não, alguns meses depois, depois do congresso de Évora que foi agora. Há muitos projetos em curso, mas estamos na fase de juntar pessoas com muita vontade e muito conhecimento teórico e prático para pensar e produzir ideias e medidas que precisamos para o nosso país. Temos tudo para estar entre os melhores em termos de qualidade de vida, temos um país maravilhoso. Apesar de eu ser uma mistura de várias raças, tenho um lado caucasiano, um africano e um indiano, sou uma portuguesa produto da diáspora e adoro Portugal. Continuamos há muito tempo a desperdiçar oportunidades e a cometer erros. E as pessoas da sociedade civil sabem quais são, mas continuamos reféns de uma rotina de exercício de poder político que penhora o futuro e o presente pelo amor ao poder. Outros países conseguiram dar a volta. E eu gostava de fazer parte desta mudança.