Snu. “Quanto tempo deve passar para que se possa tocar na nossa história?”

Snu. “Quanto tempo deve passar para que se possa tocar na nossa história?”


Depois de “Jogo de Damas”, o regresso de Patrícia Sequeira ao cinema faz-se ao lado de Inês Castel-Branco, com “Snu”. Um filme não apenas sobre a dinamarquesa que tinha o sonho de mudar o mundo, mas sobre a sua vida ao lado de Francisco Sá Carneiro. E a revolução que fizeram juntos 


Foi Natália Correia quem os apresentou; e foi Natália Correia quem falou sobre a relação entre eles como a maior revolução em Portugal depois do 25 de Abril, numa frase que ficaria quase tão conhecida quanto a de Francisco Sá Carneiro em 1977: “Se a situação for considerada incompatível com as minhas funções, escolherei a mulher que amo.” Depois de Fátima Ribeiro e Luís Alvarães a terem levado à televisão na série “3 Mulheres” (ainda disponível no RTP Play), em que Snu era interpretada por Victoria Guerra, ao lado de Soraia Chaves e Maria João Bastos nos papéis de Natália Correia e Vera Lagoa, Patrícia Sequeira estreia um filme que vem retratá-la alguns anos depois. No Portugal pós-revolucionário, ao lado de Francisco Sá Carneiro, primeiro-ministro entre 3 de janeiro de 1980 e 4 de dezembro desse mesmo ano – o dia em que, com a fundadora da D. Quixote, morreu em Camarate. Nascida em 1940 em Copenhaga, filha dos jornalistas Erik Seidenfaden e Jytte Kaastrup-Olsen, desde pequena que Ebba Merete Seidenfaden era chamada Snu – esperta em dinamarquês. Depois de ter passado a infância na Suécia, mudou-se para Londres, onde estudou e conheceu Alberto Vasco Abecassis, com quem se casou e que lhe deu o apelido pelo qual ficaria conhecida em Portugal, onde fundou, ainda em 1965, as Publicações Dom Quixote: a sua forma de luta contra o Estado Novo. Foi já depois do 25 de Abril que conheceu Francisco Sá Carneiro, com quem viveu ao longo de seis anos, sem que ele nunca tenha conseguido divorciar-se. É a história da revolução que foi o assumir dessa relação por um homem que chegou a primeiro-ministro que conta o filme de Patrícia Sequeira que está nas salas. “Precisávamos de uma Snu para ajudar a mudar a forma como a política olha para o nosso cinema”, diz Patrícia Sequeira. “Estou certa de que ela entenderia a ficção como uma excelente ferramenta para informar, sensibilizar para causas e reformar um país.”

Como surgiu este filme? A relação entre Snu Abecassis e Francisco Sá Carneiro foi logo o ponto de partida ou foi antes a figura de Snu Abecassis? E o que a levou a escolher “Snu” como título?

Patrícia Sequeira – Este filme foi um convite. Aceitei porque me senti atraída por estas personalidades e por esta história de amor, mas sobretudo porque vi uma excelente oportunidade de pôr a ficção ao serviço da nossa história. Quem me dera ter tido filmes para ver e discutir com professores – teria certamente aguçado o meu interesse por algumas matérias. Este filme pode promover o diálogo entre gerações e despertar curiosidade sobre quem éramos há 40 anos. Snu chega a Portugal com vontade de contribuir para a mudança de um país que esteve muitos anos fechado para o mundo. Snu não saberia certamente que a sua história de amor seria, também ela, um grande contributo para a mutação social de um país ainda extremamente moralista. Snu é uma mulher que conhece o mundo, pelos olhos dela veremos melhor Portugal e os portugueses, um amor e um país que se confundem nas suas conquistas e desilusões. 

Como recebeu a Inês o convite? Que ideia tinha à partida de Snu Abecassis e que importância teve para si poder interpretá-la? 

Inês Castel-Branco – Recebi o convite com alguma emoção. Por vir da Patrícia e por fazer parte da nossa história. Não fazia ideia de quem era esta mulher. Conhecia o Sá Carneiro e aquilo que defendia, bem como a sua trágica morte, mas não sabia quem tinha sido Snu. Foi depois de perceber a dimensão dela no nosso país que percebi a importância de se fazer um filme que a dê a conhecer. 


Fotografia de Bruno Gonçalves

Que tipo de pesquisa fizeram? Foi difícil encontrar informação relativa a Snu e à vida do casal, para lá do que se conhecia da vida pública de Francisco Sá Carneiro? 

PS – Da Snu há pouca informação, mas as conversas com quem a conhecia bem ajudaram muito a percebê-la e a interpretá-la. A Cláudia Clemente [coargumentista, com Patrícia Sequeira] juntou-se logo na primeira etapa de pesquisa e leitura, com a Luísa Amaral (pesquisadora) e a Helena Matos (historiadora). Depois, o grupo foi crescendo. 

ICB – Numa fase inicial, muito trabalho de leitura. Livros, notícias, documentários, enfim, o que havia disponível. Numa segunda fase falei com pessoas que privaram diretamente com ela no seu dia- -a-dia. Comecei também por trabalhar o sotaque, que queria que fosse muito subtil. Depois fui a Estocolmo conhecer a casa onde ela cresceu até ir estudar para Londres. Queria perceber um pouco mais da cultura nórdica e ainda bem que fui. Por último, houve um trabalho de improvisação baseado no guião acompanhado pela Sara Carinhas e pela Patrícia e, nessa altura, já com o Pedro. Foram vários meses de trabalho. 

Que tipo de trabalho fez em conjunto com o Pedro Almendra?

ICB – As tais improvisações e ensaios. Tive muita sorte em ter sido o Pedro a fazer este papel. É um ator com uma grande sensibilidade, generosidade e sentido de humor. E depois torna tudo bonito. Tudo o que ele diz, representa, faz. É muito bom assistir. Fiquei com uma grande admiração por ele. 

Houve alguma descoberta sobre Snu Abecassis que a tenha surpreendido particularmente nesses meses de preparação?

ICB – Tudo nesta mulher é surpreendente. O que mais me surpreendeu foi a sua coragem. A sua vontade de fazer algo pelo próximo, pelo mundo. Mas sempre com muita discrição. E depois não há uma única pessoa que não me tenha dito que ela parava qualquer sala onde entrasse, pela sua classe, pela sua presença. Tenho pena de nunca a ter conhecido. 

As produções de época exigem sempre um rigor histórico e, num país em que os orçamentos para fazer filmes serão sempre baixos, as dificuldades são acrescidas. Quais foram as maiores barreiras que tiveram de ultrapassar aqui?

PS – Fazer época é sempre caro e retratar elites mais caro é. Em Portugal, quem faz cinema tem de usar em talento o que não tem de orçamento. Como se explica que a ficção não tenha já agarrado na história dos Descobrimentos portugueses? Pois, neste caso, acho que não se explica. Somos um país riquíssimo em histórias que dariam bons filmes e séries, mas não há nem orçamento nem vontade. Depois chamam-me corajosa por contar uma das nossas maiores histórias de amor. Coragem por ser cedo demais para falar desta história? Trata-se de uma história de amor que aconteceu no final dos anos 1970. Quanto tempo deve passar para que se possa tocar na nossa história?


Fotografia de Bruno Gonçalves

A RTP estreou recentemente “3 Mulheres”, uma série que acompanhava a história de Snu Abecassis, Natália Correia e Vera Lagoa num período anterior a este, entre o início da década de 1960 e a Primavera Marcelista, quando Sá Carneiro começa a ser notado. Qual a importância de recordar agora, em 2019, a história não só de uma relação que marcou os anos pós-revolucionários – com a célebre declaração de Sá Carneiro quando disse “se a situação for considerada incompatível com as minhas funções, escolherei a mulher que amo” – como também desta mulher e das suas lutas? E porque vos parece que a figura de Snu começou a ganhar mais atenção ultimamente?

ICB – Acho que é sempre importante revisitar o passado. A história das mulheres, da sua emancipação, daquelas que foram as protagonistas dessa revolução numa altura em que se tinha medo de tudo. Das destemidas. E hoje, mais do que nunca, a questão da igualdade de género, do feminismo é um assunto cada vez mais falado e urgente. Se é preciso ir buscar exemplos de mulheres que lutaram por isso, assim seja. Precisamos de mais Snus. 

PS – Precisávamos de uma Snu para ajudar a mudar a forma como a política olha para o nosso cinema. Estou certa de que ela entenderia a ficção como uma excelente ferramenta para informar, sensibilizar para causas e reformar um país. Snu chega a Portugal e encontra um país atrasado e pobre, um país onde as mulheres acabavam por aceitar ficar em segundo plano. Ela escolheu ficar e contribuir para a mudança através das publicações da sua editora. É o contraste entre os seus ideais e a sociedade que nos mostra o Portugal dos anos 70. Quem éramos no passado ajuda a perceber quem somos hoje.


Fotografia de Bruno Gonçalves