O pouco arejado sistema de justiça


Se é inevitável que cometam, uma ou outra vez, essa tão comum virtude humana de errar constituem-se como um problema quando o seu quadro mental e ideológico está desadequado ao da sociedade em que se inscrevem


Há uns anos quando começou a ser desvendado o escândalo de pedofilia na Casa Pia lembro-me de uma advogada amiga comentar que o país se iria admirar quando constatasse as penas ligeiras que estariam inscritas no nosso quadro penal para os crimes em causa. Não nos bastará recuar muito mais de cinquenta anos para encontrar casos semelhantes nas mais ilustres classes do país sem que isso fosse motivo de escândalo. Homens e mulheres da justiça são, também, o reflexo do seu tempo. Não é apenas a lei que comanda a justiça mas a sua interpretação cruzada com os factos, feita por pessoas de carne e osso. Se é inevitável que cometam, uma ou outra vez, essa tão comum virtude humana de errar constituem-se como um problema quando o seu quadro mental e ideológico está desadequado ao da sociedade em que se inscrevem.

Procurarei tornar esta reflexão mais tangível a partir de dois casos concretos.

O juiz Neto de Moura é o caso mais óbvio. Uma das suas pérolas mais mediáticas é a aplicação de pena suspensa a um homem que agrediu a sua mulher com uma moca de pregos por esta lhe ter sido infiel. Neto de Moura justificou a sua decisão alegando que “o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem” lembrando que há sociedades “em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte”. Como atenuante para o crime, o juiz invoca inclusivamente interpretações suas de textos não-jurídicos ao afirmar que “na Bíblia podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte”. Esta semana veio a público um novo acórdão de Neto de Moura anulando a aplicação de pulseira eletrónica a um homem que se havia provado ter reiteradamente insultado e ameaçado uma mulher tendo chegado a espancá-la perfurando-lhe um tímpano. No fim de semana, Moura fez saber que processaria quem não lhe tivesse “respeitinho” nas formas de expressão públicas dando mais força à tese de ter uma sensibilidade medieval para a justiça.

”Pretos do caralho, deviam morrer todos!”, “lixo é para estar no chão”, “ainda por cima és pretoguês!” – estas são frases atribuídas a alguns dos 17 agentes da esquadra de Alfragide na sequência dos acontecimentos ali ocorridos a 5 de fevereiro de 2015 e que o Procurador do Ministério Público Manuel das Dores não considera suficientes para manter a acusação de racismo e tortura sustentada pela anterior acusação do MP. Manuel das Dores considera não estarmos na “presença de um tal grau de severidade. Era preciso mais. Era preciso que os ofendidos estivessem mais suportados nas lesões que apresentam.” Recorde-se que, em Tribunal, foram apresentadas provas de lesões graves provocadas por espancamento e inúmeros relatos de testemunhas oculares para atestar a forma violenta como estes cidadãos habitantes da Cova da Moura foram tratados e o próprio Manuel das Dores reconhece que alguns agentes sequestraram, agrediram e falsificaram documentos.

Se no primeiro caso estamos perante uma caso em que o sexo das partes não é indiferente na decisão, no segundo caso o tom de pele do Procurador parece ser determinante na desvalorização dos insultos. Num e noutro caso, quero crer que representam quadros mentais desfasados do nosso tempo civilizacional.

Escreve à segunda-feira