Memórias do grande abalo de 1969

Memórias do grande abalo de 1969


No S. José, a azáfama foi grande para transferir doentes de pisos que ficaram em risco. Lembra-o Francisco George – na altura o pai era responsável pelos Hospitais Civis de Lisboa e foi firme nos apelos a Marcello Caetano para obras urgentes.


Em alto mar, a tripulação do navio Manuel Alfredo, da marinha mercante, viveu 40 segundos de suspense, com o chão aos saltos e as bússolas num desatino.

Estavam praticamente em cima do epicentro e o comandante chegou a pensar que tinha sido o maçarico João Cadaval Rocha, então 3.º piloto, a fazer alguma asneira. Hoje com 72 anos, o comandante lembra como até a lua ficou cor de café com leite mas chegaram todos bem a casa.

13 vítimas mortais

Às primeiras horas da manhã do dia 28 de fevereiro havia registo de uma vítima mortal, um homem que não sobreviveu a uma derrocada em Lagos. Durante o fim de semana seriam confirmadas mais 12 vítimas mortais, a maioria consideradas indiretas. Estão documentadas causas relacionadas com paragem cardíacas, associadas à forte emoção do abalo. Entre as vítimas, a imprensa noticiou a morte de Jean Pierre Menjuzan, antigo cônsul de França em Lisboa, antigo combatente da Grande Guerra condecorado que vivia há vários anos em Portugal. As mortes ocorreram em Lisboa, Amadora e Montemor-o-Novo. 

Um parto atribulado

As páginas do “Diário de Lisboa” guardam a história de mãe e filha de Alhos Vedros. Inácia da Silva entrou em trabalho de parto no Hospital da Misericórdia e quando o edifício começou a tremer foi levada pela parteira para a rua. “Só pararam ao ar livre, no largo fronteiro do edifício. Mais tarde, passado o pânico, voltaram as dores e continuou o parto que veio a terminar em boas condições. A senhora foi mãe de uma menina e estão ambas bem.” O i contactou vários locais da vila à procura de mãe e filha. O próprio padre – que está na Paróquia de São Lourenço há mais de 50 anos – confessou ao i ter memória de algumas Inácias, mas nenhuma que corresponda à história, de que nunca sequer ouviu falar, diz.

Perigo no São José

Foi uma autêntica maratona para tirar os 247 doentes internados nos últimos pisos do Hospital de S. José. O trabalho foi dado como concluído pelo Exército em menos de 24 horas, depois de o hospital ter recebido a visita do ministro da Saúde e do Presidente do Conselho, Marcello Caetano. À frente dos Hospitais Civis de Lisboa estava na altura o médico Carlos George, pai de Francisco George, que correu para o hospital mal sentiu o abalo. O antigo diretor geral da Saúde tem uma memória viva daquela madrugada. “Vivíamos na rua Coelho da Rocha, em Campo de Ourique. Acordei repentinamente, fui ao quarto dos meus pais e o meu pai já não estava. A minha mãe virou-se para mim e disse ‘o teu pai saiu a correr, começou logo a dizer ai o hospital de S. José, se aquilo me cai’”, lembrou ao i. A transferência dos doentes para instalações mais seguras já estava prevista, mas naquela noite tornou-se incontornável. “Foi uma operação de emergência para proteger os doentes. Na altura não havia comunicações móveis, só mais tarde soubemos pela rádio que o Presidente do Conselho ia ao hospital. O meu pai ao jantar contou-me que tinha sido uma conversa apimentada: o hospital era muito antigo, era preciso desencadear obras, o orçamento do país estava todo concentrado na guerra colonial e o meu pai insistiu que era preciso injetar dinheiro na conservação e manutenção dos Hospitais Civis de Lisboa. Marcello Caetano sabia que o meu pai estava ligado à oposição, mas também sabia que podia contar com a inteira dedicação e lealdade dele.” E as obras? “Foram feitas, não com a pujança que deviam ter sido. Ainda hoje o principal pavilhão do Curry Cabral, que era o Hospital do Rego, está abandonado.” À época, os doentes foram transferidos para este hospital, o que implicou um esforço de adaptação em pouco tempo, com mudanças em 900 camas. Francisco George recorda as réplicas, que naqueles dias davam a impressão de que os candeeiros da rua estavam sempre a tremer. “Ficou essa marca psicológica em muitos lisboetas e a verdade é que, no caso concreto da minha família, a dedicação do meu pai ao interesse público tornou-se ainda mais clara.” 

O navio no epicentro

Estavam de regresso a casa naquela que era a sua primeira viagem na marinha mercante. “Tinha 21 anos, era como se costuma dizer um maçarico”, lembra ao i o comandante João Cadaval Rocha, na altura 3.º piloto do navio “Manuel Alfredo” da marinha mercante. O resto é história: quando se deu o sismo de 1969, a embarcação portuguesa estava praticamente em cima da zona do epicentro.

Foram 40 segundos de incógnita: “Não houve medo, ninguém conseguia perceber o que se estava a passar”, recorda o hoje comandante. Estavam no mar há dois meses, a fazer uma carreira que partia de Portugal, ia ao Funchal, seguia para Cabo Verde, Bissau e cumpria toda a costa africana das ex-colónias: S. Tomé, Cabinda e Angola. Na ida e volta, transportavam mercadoria e passageiros. “Estava de serviço na ponte e assisti àquilo desde o primeiro momento. A máquina ia a toda a força porque estávamos cheios de vontade de chegar a casa. O marinheiro ia ao leme, na altura era tudo manual, não havia girobússola. De repente estou encostado a um quadro elétrico e começo a sentir como se me estivessem a empurrar pelas costas, às sacudidelas. O marinheiro chama-me para ver a bússola e não parava de girar – provavelmente de algum campo magnético que se gerou. Tudo vibrava, nem nos conseguíamos ouvir uns aos outros, o chão estava ao saltos. De repente aparece-me o comandante a ver o que é que o menino tinha feito ao navio”, sorri. Mandaram-se parar as máquinas. “De lá de baixo diziam que não havia problema, cá em cima também não. Ficámos umas duas horas sem saber. A certa altura o comandante foi escrever um protesto de mar para apresentar às companhias de seguros para explicar que tinha sido um fenómeno externo e foi aí que ouviu no Rádio Clube Português que tinha havido um sismo e estávamos precisamente em cima do epicentro. Mais tarde, com a contribuição de outras estações sísmicas, percebemos que não era exatamente em cima: estávamos no mesmo meridiano mas um pouco mais a norte.” Alguns passageiros entraram em pânico, via-se lodo à superfície. E o céu, que até ali tinha um luar bonito, ficou estranho. “De repente a lua ficou cor de café com leite, a posteriori pensámos que podia ter havido uma qualquer emanação de gases.” Quando acabou o tremor, apanharam com as duas vagas do que terá sido um pequeno tsunami. “Via-as vir ao longe, duas riscas pretas, vagas com cinco metros de altura com uma enorme energia. Apareceu de novo o comandante a perguntar o que é que tínhamos feito”, recorda João Cadaval Rocha. Certo é que acabaram por ter alguma sorte: “Um navio petroleiro que também estava na zona voltou para trás sem eletricidade e quando chegou à Lisnave tinha a quilha de tal maneira dobrada que as companhias de seguros deram aquilo para a sucata. Apanharam a força de lado, nós foi debaixo para cima”. Em toda a carreira, que como o sismo leva 50 anos, João Cadaval Rocha não tornou a ter peripécia maior em alto mar. Foi ele que à época deu o testemunho aos jornais. “Se o sismo durasse o dobro teríamos ido para o fundo”, contou na edição do “Diário de Lisboa” de 1 de março de 1969.

Sobressalto no Ritz

Outra das histórias eternizadas nas páginas do “Diário de Lisboa” relata uma situação que tem tanto de cómico como, muito provavelmente, de inédito. Conta o jornalista que na madrugada do sismo, tanto o hall como o lobby do hotel Ritz, em Lisboa, foram invadidos por “dezenas” de  hóspedes assustados, que viram o seu sono interrompido pelo abalo e precipitaram-se dos quartos tal qual estavam – de roupa de dormir, imagine-se! Ainda assim, as “senhoras” tiveram tempo de vestir os robes, enquanto alguns dos “cavalheiros” conseguiram também vestir os “opulentos roupões”. Enquanto uns ocuparam os sofás, outros estavam “de nariz esborrachado nos vidros das portas ou conversando receosamente”.

O i contactou o hotel à procura de alguém que pudesse recordar o episódio, mas sem sucesso: “A pessoa que estava há mais tempo no hotel reformou-se já no ano passado, com 49 anos de ‘casa’”, informou fonte oficial.