Hipermercados deixam de ter carne já picada

Hipermercados deixam de ter carne já picada


Se o consumidor desejar, pode pedir para picar a carne no momento.


Um novo estudo da DECO revelou várias irregularidades na carne já picada à venda em talhos, com potenciais riscos para a saúde. O problema, diz ao i o responsável pelo estudo, é o incumprimento do que a lei impõe para a conservação da carne picada, que é mais frágil do que uma peça de carne inteira. Mas a verdade é que a carne em geral “é um meio de cultura para bactérias”, alerta especialista, que põe a tónica numa confeção adequada.

Milhões de bactérias por grama – uma quantidade alarmante ainda para mais num produto que tem conservantes escondidos e não previstos na lei –, bactérias de manipulação humana em número considerável que não é suposto estarem em produtos alimentares – os chamados estafilococos, presentes na pele do ser humano – e bactérias de origem fecal em número significativo, normalmente encontradas nos intestinos. Um produto com esta descrição afastaria qualquer um, mas a Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor (DECO) descobriu que esta é a carne que quem a compra já picada em talhos de rua e super e hipermercados anda a consumir.

“Em resumo, são essas as evidências da carne que analisámos na nossa investigação”, diz ao i Nuno Lima Dias, engenheiro alimentar responsável pelo estudo, que justifica que a má conservação da carne e os problemas de higiene explicam os resultados. Perante as evidências, a DECO mantém o veredicto de há seis anos e desaconselha, uma vez mais, a compra de carne já picada, uma decisão, de resto, quase inédita e exclusiva deste produto, o que indicia por si só a gravidade da situação. “Não é frequente a DECO desaconselhar um alimento e nós já o fazemos quanto à carne picada desde 2013. Como a carne, lembro-me apenas do queijo fresco, cujo consumo desaconselhámos e reivindicámos [mudanças] e o setor soube organizar-se. O queijo fresco antigamente era vendido a granel e tinha uma qualidade microbiológica péssima, e hoje em dia já não é vendido assim, está embalado, etc… Mudou completamente. Neste momento, em relação à carne picada, tem de ser feita alguma coisa”, defende o responsável pelo estudo. Para tal, a DECO enviou os resultados da investigação a várias entidades – Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED), Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV), Secretaria de Estado da Agricultura e Alimentação e Federação Nacional das Associações de Comerciantes de Carne (FNACC) – e o próximo passo, adianta Nuno Lima Dias ao i, é “pedir uma reunião para que se chegue a uma decisão positiva”. Entretanto, e face às dificuldades de manter a carne picada nas condições desejáveis, os hipermercados Jumbo e o Continente já deixaram de vender este produto. Se o consumidor desejar, pode pedir para picar a carne no momento.

 

O método e as conclusões

No estudo que será publicado na edição de março da Proteste, a revista da DECO, a carne usada foi comprada como qualquer consumidor compraria – o anonimato, como se lê no estudo e tal como o engenheiro alimentar ressalvou, é condição essencial. Foram então compradas 20 amostras de carne de vaca picada a granel em 20 locais, entre talhos de rua, supermercados e hipermercados na Grande Lisboa e no Grande Porto. As 20 amostras foram transportadas no mesmo dia numa carrinha frigorífica para o laboratório a menos de 2ºC e, como descreve ao i Nuno Lima Dias, “17 em 20 talhos não respeitam a temperatura de conservação (até 2ºC), 15 em 20 amostras continham sulfitos – que são proibidos – e apenas três talhos passaram na conservação e higiene”.

Vamos por pontos. A temperatura, em primeiro lugar: a lei manda que a carne picada seja conservada até 2ºC, mas só três dos 20 talhos cumprem a regra. “A temperatura média de venda dos produtos analisados superou os 5ºC. […] A temperatura nos expositores onde foi possível realizar a leitura era, na maioria das vezes, muito superior à indicada. As arcas encontram-se, com frequência, abertas, pelo que os vendedores deveriam regular os equipamentos para temperaturas mais baixas do que as legisladas, a fim de conservar os alimentos de forma adequada”, defende a DECO.

Quanto aos sulfitos, a verdade é que este conservante é amplamente usado nos mais diversos produtos alimentares. Mas quando o é, a legislação obriga a que haja uma indicação do seu uso no rótulo. E isso não acontece na carne picada, até porque a sua presença nesse produto é proibida. Contudo, as análises revelaram a presença de sulfitos em 15 amostras de carne picada, um agente inibidor de microorganismos que restaura, também, “a cor primitiva da carne, dando a aparência de um produto fresco”, lê-se no estudo. E neste ponto há ainda maior motivação para alarme, porque estão mesmo em causa problemas de saúde: “a ingestão de alimentos contendo sulfitos é habitualmente considerada uma das principais causas de broncoespasmos em pessoas asmáticas ou sensíveis, entre outros possíveis efeitos secundários”, nota o estudo. Nuno lima Dias acrescenta ainda “náuseas, dores de cabeça, erupções cutâneas e crises de asma”.

Por fim, a questão da conservação e da higiene. As análises revelaram um cocktail de bactérias, o que segundo o investigador denuncia falhas quer na forma como a carne é conservada, quer nos cuidados de higiene de quem a manipula e de quem é responsável pela limpeza das superfícies com as quais a carne contacta – e a verdade é que 17 estabelecimentos chumbaram neste ponto. Ainda assim, assegura ao i Nuno Lima Dias, “não há motivos de preocupação a nível de bactérias patogénicas [que provocam doenças]. Encontrámos apenas uma, a E.coli O157, que é destruída no processo de confeção”.

Os resultados, de resto, têm revelado uma tendência negativa desde 2013, nos vários estudos feitos pela DECO. E como explicar isso? Nuno Lima Dias coloca a tónica na fiscalização. “A amostra dos estudos feitos pela ASAE é semelhante à da DECO, que não é entidade fiscalizadora. A ASAE tem de ter meios para fazer mais, porque o que está a ser feito não é suficiente”, lamenta.

 

“Carne tem tudo aquilo que as bactérias precisam”

O alarme agora levantado diz respeito à carne picada, mas a verdade é a carne em geral exige especiais cuidados de conservação e manipulação. “Toda a carne é um meio de cultura para bactérias, tem tudo aquilo que a maior parte das bactérias, em particular as patogénicas, que nos causam doenças, precisam para se multiplicarem. É um meio muito favorável. E se as carnes são mal acondicionadas e são expostas, por exemplo, a abusos de temperatura, quanto mais elevada for a temperatura maior será a probabilidade de crescimento destas bactérias”, explica ao i Paula Teixeira, especialista em microbiologia e professora e investigadora da Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica Portuguesa no Porto. Em causa podem estar doenças gastrointestinais, acrescenta, “que podem ser mais severas ou menos severas dependendo se se trata de uma criança, um doente, um idoso ou uma pessoa saudável”.

Mas porque é que a carne picada é mais perigosa? “Quando pedimos um bife, à partida se for um bife de um animal saudável a contaminação só vai ser na parte externa, onde se cortou. No interior do bife em princípio não haverá nada ou haverá muito pouco. No caso da carne picada, ao moer a carne tudo o que está fora passa para dentro e passamos a ter bactérias em toda a parte porque a área superficial também é muito maior”, esclarece Paula Teixeira. Importa, por isso, “não consumir carnes picadas e alimentos como hambúrgueres ou almôndegas se não forem bem cozinhadas. Ou seja, tudo o que for carne picada tem de ser muito bem cozinhado para garantir que tudo o que está fora e dentro de indesejável é destruído”. Bem cozinhado, precisa a especialista, é não haver sangue e a carne não ter um tom rosado. “O ideal, se possível, é usar um termómetro de cozinha e garantir que a carne chega aos 70ºC”.

Já no momento da compra, “o mais seguro é mesmo pedir para picar na hora, mesmo sabendo nós que em alguns estabelecimentos nem sempre as picadoras estão muito limpas, até porque são equipamentos muito difíceis de limpar. Agora, também há sinais que mostram que algo não está bem: num equipamento que esteja à temperatura ambiente, a funcionar o dia todo, a probabilidade de existir carne contaminada é elevada porque há resíduos de carne nos equipamentos”. Ainda assim, a melhor hipótese é de facto “picar em casa, desde que se garanta a limpeza da máquina. O ideal é desmontar a máquina toda e lavá-la bem com água quente, na máquina de lavar loiça de preferência”.

Mas há mais dicas para garantir a qualidade da carne no momento do consumo: “depois de picada, quer seja no supermercado ou em casa, a carne deve ser preparada no menor tempo possível”. Nuno Lima Dias, por sua vez, deixa ainda outra dica: “quando se vê a carne picada nos expositores comuns onde está conservada a outra carne, que legalmente deve ser conservada a uma temperatura superior do que a carne picada, até 10ºC”, é de desconfiar.