Sem-abrigo. Homem em estado psicótico salvo de morte iminente

Sem-abrigo. Homem em estado psicótico salvo de morte iminente


Um sem-abrigo esteve mais de um mês num jardim lisboeta até ser internado compulsivamente. Antes de ser levado para o hospital, passou os últimos dias num saco de plástico


João Silva (nome fictício) é um sem-abrigo sinalizado há já algum tempo que vivia na zona ocidental da cidade de Lisboa. Costumava circular pela Avenida 24 de Julho até Belém, mas nos últimos meses passou a mover-se numa área mais restrita, sendo frequentemente visto no pequeno jardim da Avenida 24 de julho, entre o início da escadaria de Santos e o número 118 – por baixo do Jardim 9 de Abril, junto ao Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA). Nos últimos dias, costumava estar embrulhado num saco de plástico preto, sem se mexer, junto a um banco do jardim e apenas com os seus pertences a rodeá-lo. O risco de morte era iminente. Foi internado na última sexta-feira no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa – Hospital Júlio de Matos. Ninguém sabe o seu nome nem a sua história.

“É um caso que estava bem sinalizado. Naquela zona, a VITAE – Associação de Solidariedade e Desenvolvimento Internacional é a entidade responsável por todos os casos de sem-abrigo que aparecem, através das suas equipas de rua. O nosso [do Hospital Júlio de Matos] primeiro contacto com este sem-abrigo foi ainda em janeiro, no dia 22, com uma equipa da VITAE e da Câmara Municipal de Lisboa (CML). Nessa noite, fomos ao jardim para percebermos o estado do senhor. E constatámos uma situação que é raro ver na psiquiatria: o indivíduo estava em mutismo completo, sem dizer uma palavra, extraordinariamente degradado, cheio de casacos, com óculos escuros e muito sujo. Além disso, estava numa posição que é muito difícil de manter, imobilizado, com o braço levantado e a mão sobre o ouvido, possivelmente com atividade alucinatória auditivo-verbal, como costumamos dizer na nossa gíria profissional”, conta ao i o psiquiatra António Bento, diretor do Serviço de Psiquiatria Geral e Transcultural do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa – Hospital Júlio de Matos e que há mais de 30 anos que acompanha o fenómeno das pessoas sem-abrigo em Portugal.

Tentaram falar com ele, estabelecer algum tipo de contacto, mas não conseguiram e o sem-abrigo acabou por fugir. “Isto é típico dos doentes psiquiátricos, Falámos com ele e quando ele sentiu que estava a ser demasiado acossado, saltou do banco e foi-se embora”, recorda António Bento.

No dia seguinte, 23 de janeiro, o psiquiatra e um dos dois colegas do Júlio de Matos que o tinham acompanhado na noite anterior redigiram um relatório médico-psiquiátrico sobre o estado do sem-abrigo para a autoridade de saúde, que deu então início ao processo que acabou por ter um final feliz e veio a resultar no internamento do sem-abrigo. O processo, contudo, foi longo e estendeu-se por mais um mês. Porquê? “Houve aqui um nó – não por falta de profissionalismo nem de boa vontade dos profissionais – que foi o facto de a polícia não cumprir a ordem da autoridade de saúde de levar o sem-abrigo ao hospital para avaliação, porque a pessoa não tem identificação. Imagine que estava lá no sítio e por absurdo era levada em vez do sem-abrigo? Como não há identificação, há um risco de os polícias não levarem a pessoa certa”, explica ao i o psiquiatra que acompanhou toda a situação.

A única maneira de tirar pessoas sem-abrigo da rua, explica o especialista, é com um mandado de condução da autoridade de saúde, através dos delegados de saúde – mas para tal tem de haver evidência de uma doença psiquiátrica ao abrigo da lei. O mecanismo inicia-se com um relatório elaborado por um psiquiatra para a autoridade de saúde, que no seu seguimento emite um mandado de condução. Depois, o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) com a Polícia de Segurança Pública (PSP), acompanhados pela associação que sinalizou o sem-abrigo, levam o sem-abrigo ao hospital, onde os médicos psiquiatras decidem se do mandado de condução resulta ou não o internamento compulsivo, sancionado depois pelo tribunal, um passo cujo objetivo é zelar pela liberdade dos cidadãos.

Dificuldades práticas à parte, certo é que, ao longo do último mês, o estado de saúde do sem-abrigo foi-se degradando até ficar “dentro de um saco de plástico imóvel”, lamenta António Bento. “Penso que houve até mais do que um mandado de condução, até que várias entidades e pessoas tentaram junto da PSP sensibilizar e duas técnicas da VITAE acompanharam, como manda a lei, os agentes, para garantirem que estavam a levar a pessoa certa”, conta o psiquiatra. Na manhã da última sexta-feira, as autoridades responsáveis encontraram-se então junto ao sem-abrigo, pelas 10 horas, levando o homem à urgência do Hospital de São José, em Lisboa, já perto do meio dia. “Foram feitos os exames necessários e os meus colegas determinaram que o sem-abrigo reunia as condições para ser internado. Foi internado no meu serviço, no Hospital Júlio de Matos, onde no sábado estava tranquilamente a dormir”, acrescenta por fim António Bento.

Um final feliz Ao contrário de outros casos, João Silva foi retirado da rua. Está em estado psicótico, que “coloca a pessoa fora da realidade como nós a entendemos”, explica António Bento, e apesar de não falar, colabora. E é um exemplo da ligação entre o fenómeno dos sem-abrigo e a saúde mental. O que esperar agora quanto ao seu futuro? “Agora ficará o tempo necessário para se tratar e depois se houver necessidade terá alta”, esclarece o médico, que conhece bem o destino destas pessoas: “O que acontece muitas vezes neste tipo de casos é que estas pessoas estão tão degradadas que mesmo quando arranjamos uma solução habitacional quando tem alta, a pessoa não pode ir porque já não tem autonomia, precisa de cuidados e acompanhamento permanente”. Deverá ser esse o destino deste sem-abrigo, como diz ao i: “A VITAE já se comprometeu a recebê-lo quando tiver alta”.

Sem-abrigo e doença mental O psiquiatra lamenta que a sociedade continue a ter o “paradigma do sem abrigo ser um desempregado, ser um pobre, não ter casa e não passar pela cabeça de ninguém que haja pessoas que já nem o nome sabem e que ninguém sabe também”, exortando a uma maior sensibilização das pessoas em geral para o peso da doença mental nestes casos. Até porque, segundo as suas contas, 90% das pessoas sem-abrigo têm doença mental.

Esta, de resto, não foi a primeira vez que o médico acompanhou um caso com tal gravidade: há cerca de um ano, um outro sem-abrigo esteve mais de um ano numa situação idêntica, a viver num saco de plástico. Tal como João Silva, o homem também não sabia o nome. Foi internado compulsivamente, recebeu o tratamento necessário e teve alta. Desde aí, não se sabe o que lhe terá acontecido.