O improvável, por vezes, acontece. Numa sexta-feira em que a chuva trazia consigo um famoso nome ligado à guerra de Troia, devido a uma encomenda que há longo tempo devia ter sido levantada, o crítico entra na livraria da Guilherme Cossoul. O livreiro, daqueles à antiga, entre a miríade de novidades sem interesse que, todos os meses, enchem os pequenos espaços que continuam reservados ao livro, escolhe uns quantos títulos que, por motivos mais ou menos inconfessáveis, entrariam na categoria das afinidades mais ou menos eletivas: um livro que faz parte da bibliografia básica sobre Camilo Castelo Branco, paixão antiga, daquelas que retornam constantemente, a tradução cuidada de Kafavis por Manuel Resende, um pequeno livro de dois artistas contemporâneos e “No Impudor do Olhar” (ed. Maldoror), de um autor, Octave Lothar, que facilmente se percebe ser um pseudónimo – descobre-se depois que todo o livro, inclusive o nome do autor e das personagens, é uma homenagem a Pierre Klossowski, escritor francês, irmão do artista plástico Balthus e admirador confesso do Divino Marquês, sobre o qual escreveu um dos melhores livro que conheço, “Sade, Meu Próximo”, e de Nietzsche.
No momento em que a literatura arregimenta o real, seja para o submeter às regras da escrita criativa, seja para se tornar um espelho mais ou menos conseguido, este livro com pouco mais de 100 páginas transporta consigo a manhã de festa que há muito se julgava perdida. Numa explosão de desejo e corpos, com uma língua inundada por todos os sentidos, “No Impudor do Olhar” é verdadeiramente impossível: um livro de outro tempo e espaço, sem irmãos no nosso horizonte, sem condições de possibilidade num mundo literário engolido pela pressa em dizer alguma coisa, que quer ser atual; enfim, uma celebração em que a literatura se transforma por um breve momento num outro nome para uma língua carregada de fogo e, palavra antiga cujo sentido nos é quase inaudível, beleza.
A história, aliás, facilmente se conta e segue um dispositivo – a missiva – já clássico: Denise, uma ocidental de um país que desconhecemos, é contratada para “Grande Kehaya”, “governanta-geral, superintendente de tudo quanto se ligue ao desejo carnal e à sua contenção”, por um sultão cujo nome não sabemos (apenas as iniciais, J.Y.) para trabalhar num Serralho, um palácio onde existe um harém com toda uma hierarquia de mulheres e eunucos – da sultana à “kadine”, das “ikbals, subesposas de estatuto menor”, às escravas brancas, “educadoras responsáveis pelas mais jovens concubinas”, até às escravas negras cujo “exercício do amor está-lhes proibido sob qualquer forma”. É daí, do Serralho, que escreve 12 longas cartas a Pierre – e nada mais sabemos dele a não ser o nome e que é o amado de Denise. Este dispositivo, que nos deixa na ignorância quanto ao tempo em que decorre, o espaço em que se situa e, inclusive, o nome e as relações que as personagens mantém umas com as outras, corresponde a um gesto já clássico dentro do género em que se situa – e não deve por isso ser confundido com aquele estratagema de colocar os personagens em locais que pairam algures no mundo, para conferir à narrativa um traço de universalidade que, de facto, nunca conseguem ganhar. Mas é este dispositivo que, além ou aquém da história, serve para que a literatura e a língua, o olhar e os sentidos se tornem indiscerníveis, imanentes a um desejo que percorre a superfície dos corpos, a festa de uma “libido vivida e sonhada em seus excessos, imaginada e narrada em seus extremos”.
Para quem tenha dúvidas sobre esta língua inflamada cujo desenho meticuloso liberta, ao mesmo tempo, no limite extremo em que desejo e corpo se criam mutuamente, a multiplicação dos sentidos – e, no fim, o autor refere Nietzsche: “glorificam Apolo no rigor da pura visualidade ali narrada, mas põem-se ao serviço de Diónisos” -, bastará ouvir, porque é também do som que se trata, como se este livro pedisse para ser lido em voz alta, uma breve passagem. Denise, no limite da escrita, descreve e desenha a Pierre o “hammam”, o lugar, interdito até aos eunucos, onde as concubinas, num mundo controlado ao milímetro, respiram um pouco de liberdade: “O acesso é interdito a eunucos, só o gineceu ali penetra: e as mulheres permitem-se grandes liberdades, sobretudo a da nudez integral, oferecendo-se umas às outras no impudor do olhar. Não duvides de que esses corpos em seiva, acesos pelos rigores da contenção e que assim ardem lentos ao lume imperioso do desejo, esses olhos ávidos da volúpia de verem e serem vistos, rompem enfim num diálogo vivo.”
A esta lentidão do desejo, em que o corpo é “tratado como um cosmos” numa cerimónia “extensa, prolongada e meticulosa”, como se toda a pele fosse a sua celebração, corresponde este momento em que escrita, volúpia e desenho se continuam uns nos noutros, como corpos entrelaçados. São as próprias cartas, de longa tradição erótica, que trabalham com o tempo – o tempo que demoram a chegar, como um desejo que percorre o corpo, sempre na iminência de se perderem, a lenta leitura da caligrafia, arabesco pessoal, no limite dos dedos, a abertura da carta, segredo revelado aos olhos.
Mas a Denise não corresponde apenas superintender a uma economia libidinal, o jogo tenso entre desejo e contenção; ela tem também de inscrever no livro do Serralho – livro que o Sultão usa para convocar esta ou aquela mulher – todas as informações possíveis e imagináveis: “Por fim, hei-de observá-la com minúcia, alma e corpo, medi-la, pesá-la, inspeccioná-la e desenhá-la nua em posições diversas e expressivas.” Esta antropometria, sinal de um universo concentracionário onde todos os mínimos aspetos devem ser controlados, medidos e conhecidos numa visibilidade sem limites, continua nas missivas que Denise redige a Pierre, onde todos os ínfimos detalhes se inscrevem numa linguagem clássica, num desenho claro e sem excesso – mas aí onde se esperaria todo o rigor da observação objetiva, a meticulosidade neutra do observador, eis que o desejo consegue torcer todas as hierarquias, contaminar a ordenação rigorosa do mundo e irromper no limite de um olhar que pretende apenas registar:
“Tinha a forma de uma lingueta carnuda, que puxei delicada com os meus dedos e animei de uma massagem subtil, entra as polpas do polegar, indicador e médio da mão destra, dedos inteligentes entre todos, com os quais desenho, pinto, gravo e te escrevo estas cartas. Um sorriso de esfinge desenhou-se nos olhos da serraili, espelhou-se no compasso da sua respiração, estorceu-lhe levemente o torso, e as coxas menearam os primeiros tempos de um bailado que não deixei apressar-se nem cumprir-se.”
É nisto que reside, de facto, a extrema beleza deste livro: quando descreve a lenta preparação do corpo de Baladine, refere a multiplicidade de espelhos que são colocados de todas as perspetivas possíveis para que ela, no limite do prazer, veja – o termo usado é “mirar”, bastante mais conforme a este olhar que se perde no corpo – “as suas formas, longa, lubricamente, por minutos e horas, ousando novos ângulos, repetindo os ângulos anteriores, tão fastos”. E é no seguimento deste jogo de espelhos, na multiplicidade dos ângulos, que estas cartas se colocam, como se a escrita, como o desenho de que fala Denise, fosse esse captar de “momentos extremos dos corpos no jogo do desejo, mostrando o tempo do todo no instante da parte” ou os “impulsos do espírito rumo a lances predilectos da libido, deixando entrever o ponto de chegada a partir das intenções que pairam”. No momento, portanto, em que a língua é uma erótica, a manhã de festa do desejo.