Recusa ser considerado um “símbolo” dos coletes amarelos desde que foi baleado com uma bola de borracha pela polícia na Praça da Bastilha, numa manifestação, preferindo ser visto como uma “figura”. Na rua, não são poucos os franceses que param, olham e reconhecem Jérôme Rodrigues, lusodescendente de 40 anos e um dos líderes dos coletes amarelos, ora expressando palavras de solidariedade ora dando apoio ao movimento. Num café em Châtelet, Paris, Rodrigues avisa que a democracia em França está em risco nos dias que correm e não descarta a possibilidade de ter sido baleado de propósito, numa tentativa do governo de fragilizar a liderança de um movimento que tem sido a sua grande dor de cabeça nas últimas 12 semanas. O lusodescendente foi a 20.a vítima de uma arma considerada não letal, mas que já marcou dezenas de pessoas – entre elas estão dois adolescentes, uma rapariga e um rapaz, que perderam um olho cada um. Exige que as LBD-40 deixem de ser usadas pela polícia e responsabiliza o presidente francês, Emmanuel Macron, e o seu ministro do Interior, Christophe Castaner, pela violência policial, acusando-os de usarem a polícia para tentarem calar o povo que saiu às ruas. Já entregou uma queixa contra o Estado francês e espera que se faça justiça.
Como é ser um símbolo dos coletes amarelos desde que foi baleado?
Não sou um símbolo, sou uma figura. Antes de me ter acontecido, considerava-me um ator e testemunha da situação, pois mostrava, com a minha câmara, tudo o que se estava a passar nas manifestações. E ator porque também fazia parte da organização e enviava informações a toda a gente para saberem onde iria ser e o que se ia passar. Como sou simpático e falo com todas as pessoas, quando me atingiram com a bola [de borracha] ficou tudo traumatizado. Elevaram-me a símbolo dos feridos, mas isso eu não quero. Sou o número 20 a perder um olho e não devia existir um número 1. Dois putos com 20 anos, uma miúda e um miúdo, já não têm olho, coitados. Eu tenho 40 anos e, psicologicamente, posso ultrapassá-lo, mas para eles a vida será muito difícil. Para mim, eles são mais símbolo dos feridos do que eu. Ser um exemplo para se acabar com o uso das bolas de borracha, pode ser; símbolo, não.
Consegue recordar os momentos antes e depois de ser baleado?
Sim, para já, está filmado. Deve ser, em França, o Facebook live do ano. Se calhar, ainda vou ganhar um óscar. Sei tudo aquilo que se passou.
Pode descrever?
Vou para a Praça da Bastilha e está tudo em confrontos, podem ser black blocs, extrema-direita ou extrema-esquerda, pessoal que quer arranjar problemas. Já estou farto daquilo, por os meus amigos, dos coletes amarelos, acabarem magoados, e então vou para lá chamar todas as pessoas para voltarem para trás, para irmos para outro ponto até à manifestação da noite na Praça da República. Passou por mim uma coluna da polícia e recuei – não estava ali para impedir os polícias de trabalhar nem para chatear ninguém. Caiu ao pé de mim uma granada. Aquilo tem 25 gramas de TNT, é muito perigoso. Foi a segunda vez que levei com uma granada – aquilo rebenta com os ouvidos. Fico um bocado tonto e, a seguir, levo o tiro. Estava com o meu telemóvel e a comer uma sandes – até dá para ver que estava a comer no live – e os manifestantes paramédicos começam a correr para junto de mim. Ninguém ali estava a ser perigoso, porque nos atacaram? Não sei.
Como caracterizaria a atuação da polícia nestas últimas 12 semanas?
Para mim, não é violência policial, mas governamental. O governo está a usar a polícia para se proteger a si próprio, como se fosse uma barreira. Não tenho nada contra a polícia, pois acho que fazem o seu trabalho, mas não devia ser assim, não deviam bater no povo desta maneira. Estamos em França, uma democracia, mãe dos direitos humanos. Na minha escola ensinaram-me a liberdade, a fraternidade e a igualdade, mas já não há. Vamos para a rua, estamos com fome, precisamos de viver com o que trabalhamos, será que merecemos, da parte do governo, levar com balas de borracha? Isto já não tem nada a ver com a França que ensinam na escola. Isto é uma falta de democracia. Há algo a acontecer em França que faz com que se esteja a tornar muito perigosa.
Acha que foi atingido de propósito por ser líder dos coletes amarelos?
Há três hipóteses. A primeira é que foi um acidente, o polícia disparou e, pronto, acontece. A segunda é a de o polícia ser doido e ter disparado para me atingir. E a terceira é o governo: mandou dar um tiro no Jérôme. Houve muita gente que diz ter ouvido nos walkie talkies: “O Jérôme está cá, dispara.” Isto são palavras das quais ainda não temos confirmação. O governo pode ter pensado: vamos ferir um dos líderes e que vai pedir guerra quando se levantar. Isto seria fazer o jogo do governo. Se saísse do hospital a pedir vingança, no sábado [passado] teria sido uma guerra em Paris e o governo enviaria toda a polícia, feria toda a gente e iria ganhar. Só que eu fiz o contrário: pedi calma e pacifismo, e isto tramou o governo, penso eu. Chamo-me Rodrigues e não quero que o meu nome fique associado a uma guerra em Paris. Tenho respeito pelo meu nome e não quero que os meus pais o vejam, a minha origem é importante para mim. Não quero violência. A IGPN [Inspeção-Geral da Polícia Nacional] está a investigar e vamos confiar, mas sem largar o osso. O governo disse que ninguém disparou.
Que foi um fragmento de granada.
Sim, mas não tenho nada no olho que o prove. Um fragmento dilacera a carne e não tenho nada, nem um bocado de plástico. O médico não é capaz de dizer que foi uma bola de borracha, mas o que viu e descreve dá a entender que se tratou de uma. Passados dois dias do disparo, o polícia admitiu que disparou, quando antes dizia que não. Só que falhou a comunicação do disparo por meia hora. Por cada tiro disparado, a polícia tem uma hora para transmitir a informação à central, mas ele disse que se enganou numa meia hora. No sábado, todas as câmaras de Paris estavam viradas para os amarelos e naquela parte da Bastilha não funcionavam. Uma não funcionava e a outra, de 180 graus, estava virada para o outro lado. Eles estão com medo.
Já apresentou queixa através do seu advogado, Philippe de Veulle, contra o Estado francês. O que espera?
Que paguem pela sua responsabilidade. Não falo em dinheiro, mas todo o povo que trabalha e errou tem de arcar com a responsabilidade. Eles têm de pagar pelo que me aconteceu.
Pagar como? Quer uma indemnização?
Prisão.
Para o polícia que disparou?
Para o polícia que disparou e para quem o mandou disparar. Fui diretor de lojas muito tempo e era responsável pelos erros que os meus funcionários faziam.
Quem responsabiliza diretamente? O presidente, Emmanuel Macron? O ministro do Interior, Christophe Castaner?
Os dois. Quem manda no Castaner? Macron. E em quem manda o Castaner? Na polícia. Essas pessoas têm de pagar por terem disparado sobre o povo. Vou–lhe dizer uma coisa, um dos testemunhos mais importantes que recebi foi o de um jornalista de guerra que me foi ver ao hospital. Apresentou-se-me dizendo “sou jornalista de guerra em Paris”. Há duas palavras nesta frase que não fazem sentido: Paris e guerra. Nunca na minha vida pensava ouvir estas duas palavras juntas em Paris. O jornalista não filmou o que aconteceu, mas tinha uma câmara com um som dos diabos e ouve-se bem: pum, poc. A gravação foi enviada para uma televisão muito vista aqui em França e estava lá a prova: uma bala de borracha foi disparada. E, depois, o polícia admitiu que tinha disparado.
Foi um polícia da Brigada Anticriminalidade, de elite, ou um gendarme?
Foi um polícia de patrulha, um tipo que faz sinalização na rua. Gostava de saber qual o nível de formação que teve para poder usar as LBD-40. Ninguém pode usá–las como quer. Onde está a formação dele? Em dois meses, a polícia disparou mais de 9200 bolas, mais do que nos últimos cinco anos juntos. É uma loucura. Ontem [segunda-feira] estava aqui em Châtelet e um homem aproximou-se de mim e contou-me que um amigo dele perdeu um olho numa manifestação por causa destas bolas. Perguntei-lhe em que ato [manifestação dos coletes amarelos] e ele disse-me que foi em 2016, numa manifestação contra a lei do trabalho de Macron. Este problema das LBD-40 já era um problema nas manifestações anteriores e nos bairros pobres da periferia de Paris, onde os miúdos também levam com as bolas e perdem a vista. Em vez de apontarem à perna para fazer a pessoa cair, não, atiram à cabeça. As armas têm mira holográfica, de guerra (gosto de jogos de tiros no computador), e acertam bem. Acertaram-me mesmo no olho. Nem me partiram o osso, foi mesmo no centro do olho. Um rapaz de 20 anos ficou com o osso da cara partido e teve de levar uma placa de titânio. Os médicos abriram-lhe a cabeça para lhe colocarem uma placa, mas ficou cego por a reação [clínica] ter sido má.
Já imaginou a sua vida daqui para a frente?
Neste momento, não.
Tem pensado nisso?
Às vezes, mas estou agora no movimento e temos de acabar com o uso das LBD-40 para poder pensar sossegado. Estava a trocar de emprego e a fazer uma formação de canalizador, mas este trabalho é perigoso para o olho, posso apanhar uma infeção. Às vezes dói-me o olho quando faço certos movimentos, quando me baixo ou mexo a cabeça muito rapidamente. Está aqui [à minha direita] e não o vejo. Isso foi a primeira coisa de que me apercebi quando saí do hospital. Fizeram-me uma festa de boas-vindas em casa da minha irmã, com os meus mais próximos, e estava sentado num sítio e não via quem estava ao meu lado. Tive de mudar de sítio e pôr-me num canto para conseguir ver todas as pessoas. Não posso conduzir. Tenho três meses de baixa, mas podem ser mais. Isso chateia-me muito, sou filho de portugueses e sou trabalhador – toda a gente sabe que os portugueses são trabalhadores em França. Por agora, tenho três objetivos: a minha saúde, a minha filha, que viu em direto o pai ser atingido na Bastilha e ficou com um trauma.
Que idade tem?
Tem 13 anos e é complicado esconder--lhe a verdade. Ela ficou chocada. Durante a noite, os meios de comunicação social começaram a dizer que estava em coma e ela começou a pensar que eu ia morrer. Ficou mesmo traumatizada. E quero que o Estado pague pelo menos as despesas médicas.
E o terceiro objetivo?
Os coletes amarelos. Organizá-los e ir até ao fim.
Qual é o fim?
Que o Macron nos dê aquilo de que precisamos: conseguirmos viver do nosso salário. Acabar com os impostos e com uma certa forma de democracia em França que, para mim, está desatualizada. E o fim dos privilégios do governo.
Que privilégios?
Quando um membro da família de um deputado francês morre, o Estado paga o funeral. Para os filhos, mulher, pais, tudo. E a nós, nada. Não sou de se acabar, mas se eles têm direito, então nós também temos. Agora juntaram mais dois objetivos: um pedido de desculpa do governo e o fim destas armas. O mais importante disto é: onde está a democracia em França? Há um problema real de democracia no país. Está a calar a boca ao povo. O Macron começou a dizer umas coisas sobre fake news e que a imprensa estaria controlada. Se me lembro da história da França e do mundo, quando se cala o povo e depois os média, cheira mal, mesmo muito mal. O mundo inteiro tem de saber o que se está a passar em França.
Os coletes amarelos surpreenderam tudo e todos, inclusive Macron.
É verdade, são a maioria silenciosa do povo que nada fazia, que ia para o trabalho e que pagava os impostos, que a certa altura rebentou.
De onde vieram?
De todo o país. São deficientes, reformados, trabalhadores que não conseguem pagar as contas, pessoas sem casa, jovens. É mesmo um movimento social.
E como se organizam?
Pois, isso é bastante complicado. É o que estamos a tentar fazer ao criar uma orientação, para pôr as reivindicações em ordem e para termos uma única voz. Cada um tem o seu problema, mas não pode falar apenas de si. Foram 40 anos de divisões entre o povo e depois dizem: “Os coletes amarelos estão divididos.” Pois! Temos é de unir as pessoas, pois a união vai dar a todos de igual. Todas as pessoas querem é encher o frigorífico, viver do seu salário.
No início do movimento falou-se muito na imprensa de que estava a ser infiltrado pela extrema-direita.
Não, isso é uma mentira do governo para dividir o movimento. Já me acusaram de ser extremista e xenófobo. O meu avô é francês e os meus bisavós do lado da minha mãe usaram as roupas dos campos de concentração da ii Guerra Mundial. Isto é a história da minha família.
Marine Le Pen não tentou aproveitar-se?
Ela que faça a sua vida. Enviou-me uma mensagem quando fui baleado. Quero lá saber. Se podia fazer alguma coisa não é agora, era antes. Não queremos saber dos políticos. Mas não somos extremistas.
E Jean-Luc Mélenchon?
Faz o que quiser, é igual. Queria encontrar-se comigo. Enviou-me uma carta pessoal a perguntar como estava. Apenas aceitei encontrar-me com uma deputada que já o queria fazer antes de isto acontecer. Disse que a contactasse se precisasse de algo. Pedi-lhe uma sala para organizar um debate. São as pessoas dos partidos que me querem ver que precisam de ajuda, não eu. Faz 40 anos que precisamos dos políticos e nada.
E os black blocs e a extrema-esquerda nas manifestações?
São pessoas que querem andar à porrada com a extrema-direita ou com a polícia. Os antifa e os fascistas andam à porrada, e os black blocs ainda não percebi bem. A polícia sabe quem são, mas porque não os param? Tenho contactos na polícia e em sindicatos da polícia que me dizem que os polícias recebem ordem para não avançar quando as lojas estão a ser partidas e as pedras a serem arrancadas da calçada. Isto é fazer o jogo do governo.
É para dar a imagem de que os coletes amarelos são violentos?
Exato. São eles que o dizem, não eu. Eu já sabia. Fui para a prisão só por ter ido a um restaurante.
Como assim?
Foi numa quarta-feira. Juntámos alguns coletes amarelos para irmos conversar num restaurante. Fomos apanhados pela polícia e levaram-nos para a esquadra.
Por que motivo?
Nenhum, foi arbitrário.
Falou do jogo do governo. Qual tem sido a estratégia de Macron?
Ele nem sabe o que fazer. Já vamos em 12 manifestações. O Macron fez três jogadas: na primeira ignorou, a partir da terceira manifestação prometeu dar muito dinheiro – mas eu não recebi nada, foi um engano -, e depois com o debate. Estou de acordo com um debate, de falar com todas as pessoas, até estou a reservar salas para fazer debates, mas da forma dele não presta. E agora é o referendo. Referendo sobre o quê? É preciso um referendo para saber que o povo vai mal? Por favor! Fiz uma sondagem no Facebook e 16 mil pessoas já votaram a dizer que não querem o debate do Macron.
A estratégia de Macron também depende da repressão.
Isso é a primeira coisa.
Acha que vai mudar de estratégia?
Ele é teimoso.
Quais são os próximos passos dos coletes amarelos?
A manifestação no próximo sábado. Estou a tentar juntar as várias figuras do movimento. É complicado, por um pensar uma coisa, outro outra. Eu penso no movimento: quero juntar o máximo de pessoas possível. Juntar as figuras todas para passarmos a falar a uma só voz e as pessoas seguirem-nos. A minha ideia é juntar cinco milhões de pessoas: dois em Paris e três milhões no resto do país.
Acha possível?
Já vi manifestações em França com 1,5 milhões de pessoas e a lei não passou.
Quantas pessoas têm estado na rua?
À volta de 400 mil todas as semanas. Quem faz a contagem são os sindicatos da polícia. Agora, os coletes amarelos estão a arranjar forma de contar as pessoas. Garanto que no sábado passado diziam oito mil pessoas em Paris, mas era impossível. Estive 50 minutos a filmar a marcha e eram pessoas que nunca mais acabava. Em França, a polícia não conta quem circula no passeio, tem de se andar mesmo na estrada.
Acha que o que lhe aconteceu a si e aos outros 19 levará mais pessoas para a rua?
No sábado levou muitas mais pessoas. Houve pessoas de Marselha que vieram a Paris só para me verem. Estou a receber imagens de apoio e até desenhos de crianças do polícia a disparar contra mim. Estamos a criar uma geração de miúdos que são contra a polícia. A minha filha não fala aos polícias.
Há quem, entre os coletes amarelos, esteja a preparar uma lista às eleições europeias. Pondera avançar com um partido político?
Há muitas pessoas que tentam aproveitar-se do movimento. Por agora, o movimento tem de ganhar, depois logo se vê. Tenho a certeza de que quando os franceses tiverem a barriga cheia conseguirão pensar noutra forma de democracia.
O seu pai vivia era de Miranda do Corvo e emigrou para França.
Não teve nada a ver com trabalho. A maior parte dos portugueses chegou a França entre 1958 e 1968. O meu pai chegou em 1978. A minha mãe, que é francesa, foi passar férias a Portugal e os dois apaixonaram-se, e ele decidiu vir para França. Foi uma emigração de amor, não de trabalho.
Nasceu cá, como foi o seu percurso?
Tive uma vida normal, passava férias em Portugal. Como não se falava português em casa, por a minha mãe ser francesa, o meu pai pôs-me a mim e aos meus irmãos numa escola portuguesa onde ia todas as quartas-feiras à tarde. Depois íamos de férias para Portugal por dois meses e é assim que tenho essa parte da cultura portuguesa.
Estava a tirar uma formação, mas trabalhou em quê antes?
A minha principal formação foi numa escola da Disneylândia Paris durante três anos. Trabalhei no comércio durante 20 anos e tive um acidente de vida de tipo sentimental. Tudo foi abaixo e fiquei sem nada. Fiquei quase quatro anos a tentar recompor a minha vida.
Posso perguntar o que foi?
Trabalhei um ano em Madrid e, quando voltei a França, a mulher com quem ia casar – já estava há nove anos com ela – tinha desaparecido. Não estava ninguém em casa, metade do recheio da casa desapareceu, roubou-me o ouro e o cão e não pagou a renda durante seis meses. Tive de ir viver com o meu avô para poder recuperar.
Como reagiu a comunidade portuguesa ao que lhe aconteceu agora?
Tenho grande parte da comunidade portuguesa a apoiar-me. Há muitas bandeiras portuguesas. É espetacular.
Há muitos portugueses no movimento?
Claro, há muitos. Também fazem parte da França, fazem-na avançar com o seu trabalho. Muitos trabalham nas obras.