(1.o momento) “Sociedade da ministra da Cultura ganha 988 mil euros em contratos”, titula o “Correio da Manhã”. A história fundamenta-se na soma de contratos públicos realizados ao longo de vários anos por uma das mais importantes e antigas sociedades de engenharia do país: a Joule. Desconhecia que Graça Fonseca detém uma pequena quota da sociedade, mas parece-me normal que a Joule tenha contratos com o Estado e até admito que o seu trabalho para o setor público seja maior pelo facto de estar integrada em equipas de projeto lideradas por sociedades de arquitetura. Não se veiculando uma mentira, a ideia de favorecimento subjacente a todo o artigo não se sustenta em qualquer dos factos noticiados.
(2.o momento) “Rede vermelha. Câmaras comunistas adjudicam dois milhões de euros a empresas de militantes”, titula o “Observador”. A primeira empresa que aparece referenciada na notícia chama-se Ponto Seguro. Titula-se: “Um milhão para seguradora que tem militantes como sócios e administradores”. No texto corrige-se o título, “mais de um milhão de euros (correspondentes a 40 contratos que renderam pelo menos 826.630 euros à empresa, mas aos quais acresceu IVA)”. Como o leitor perceberá, o IVA não é uma receita da empresa. Pesquisei no portal de contratação pública e os três maiores contratos são: 299.679,99€ (Sines, 2016, maioria PS); 244.059,15€ (Moita, 2018, maioria PCP) e 209.406,80€ (Sines, 2019, maioria PS). A seguradora tem entre os seus clientes vários municípios comunistas, mas também a Universidade de Lisboa, a Casa Pia de Lisboa ou a extinta Junta de Freguesia dos Anjos (à época, maioria PSD/CDS). Meias verdades, para confirmar uma tese escrita previamente.
(3.o momento) No programa da TVI de Ana Leal, o mesmo jornalista que ainda não retificou publicamente informações, objetivamente falsas, que veiculou sobre os contratos da CMLoures com o genro de Jerónimo de Sousa, faz uma peça sobre o aluguer de prédios dos Inválidos do Comércio a entidades que poderão fazer alojamento local e despejos. A peça é apimentada por se revelar que quem gere esta operação é o pai de João Ferreira (erradamente apresentado como militante do PCP), cujo filho, vereador da CMLisboa, se tem manifestado contra a turistificação da cidade. Repare-se que o sensacionalismo se poderia colocar qualquer que fosse a posição de João Ferreira: sendo contra a turistificação, porque entra em contradição com o que se diz ser o negócio do pai; se fosse a favor do alojamento local, porque seria acusado de facilitar o respetivo negócio.
Pensemos bem no que queremos. Será que não admitimos governantes com passado empresarial? Será que devemos proibir militantes de partidos de serem sócios de empresas ou prestadores de serviços ao Estado? Será que temos de controlar o que fazem profissionalmente os nossos familiares?
Durante a semana em que saíram estas notícias também tomámos conhecimento do nome de empresas e empresários que provocaram um enorme rombo no banco público. Investigação sobre esta matéria? Zero. Compare-se a proporção dos problemas em termos do interesse público. Cada vez mais se sente haver investigações que não seguem uma pista, mas se constroem para confirmar uma tese. Quando a tese não obtém as conclusões pretendidas, não há espaço de recuo. Publicam-se meias verdades e insinuações.
Este não é apenas o caminho de descredibilização dos nossos representantes, mas também o da descredibilização do jornalismo. Viu-se acontecer no Brasil, e quando o jornalismo decente se apercebeu do que tinha potenciado já era tarde. Não estamos longe de uma mentira recebida no WhatsApp ter o mesmo valor que uma investigação jornalística.
O resultado, conhecemo-lo. Safam-se os corruptos e emergem os fascismos.
Escreve à segunda-feira