As multinacionais elogiam-no, os críticos acusam-no de ser uma ameaça para a democracia, os direitos humanos e os especialistas sobre o tema dividem-se. Chama-se Resolução de Diferendos entre Investidores e Estados (ISDS, sigla em inglês) e é há muito um dos pilares jurídicos dos tratados de comércio e investimento bilaterais e multilaterais – os denominados tratados de livre comércio que nos últimos anos se multiplicaram, sendo hoje mais de dois milhares. Agora, aproveitando o início do Fórum Económico Mundial, em Davos, mais de 150 organizações não governamentais, sindicatos, partidos e movimentos sociais lançaram a petição “Direitos para as pessoas, regras para as corporações – Stop ISDS”. Querem que este mecanismo seja abolido, defendendo, em alternativa, que sejam os tribunais nacionais a decidir sobre os diferendos ao abrigo do Tratado Vinculativo das Nações Unidas sobre multinacionais e direitos humanos que está a ser negociado.
“São tribunais que estão fora do normal funcionamento das instituições nacionais e foram criados para investidores. Quem decide sobre os casos são árbitros que não são designados pelos sistemas judiciais dos vários países”, critica Isabel Mendes Lopes, dirigente do LIVRE, partido que se juntou à campanha internacional depois de tomar conhecimento dela pela Plataforma Troca, que se dedica ao comércio justo. “Permitem às grandes multinacionais colocar governos em causa por decisões que tomem a favor do bem comum”, acrescentou Mendes Lopes.
E, como exemplo, a dirigente partidária dá a poderosa Alemanha, cujo governo se viu “obrigado a aligeirar a dureza da sua legislação ambiental”. “A Alemanha avançou com uma legislação ambiental mais restritiva em relação à qualidade da água e uma empresa do Norte da Europa, que tinha um projeto de central hidroelétrica movida a carvão, fez uma queixa por a legislação ameaçar o seu investimento”, explicou, referindo que, caso os governos não recuem e o tribunal arbitral decida contra eles, “veem-se muitas vezes obrigados a pagar grandes indemnizações”.
Isabel Mendes Lopes defende que devem ser os tribunais nacionais a deliberarem sobre os diferendos. E em alternativa o que deve haver é uma “justiça a nível mundial em que qualquer comunidade ou país consiga processar uma multinacional”, porque hoje os custos dos processos são incomportáveis para um cidadão comum que queira processar uma grande empresa. “Defendemos que não haja sistemas judiciais separados para multinacionais e investidores do resto dos sistemas do mundo e dos vários países”, acrescenta.
Opinião não partilhada por Sofia Martins, advogada especialista em contencioso e arbitragem da Miranda & Associados, que questiona: “Porque é que tenho de impor a soberania dos meus tribunais a um investidor estrangeiro? No limite, o que pode acontecer – e acontece muitas vezes – é que investidores potenciais em determinados países percebem que se um dia tiverem problemas e algum dia ficarem na mão dos tribunais locais desistem de fazer o investimento por não confiarem na isenção e idoneidade dos tribunais”. Além disso, continua a advogada, o “Estado português, como o alemão, tem princípios constitucionais, um dos quais é a garantia da propriedade privada, e muitas vezes quando se celebram contratos de investimento com qualquer investidor de outro país dão-lhe garantias”. Quando alguém investe, continuou, fá-lo com “base do que é conhecido no momento e com expectativas de retorno do seu negócio”.
Nos dias que correm, a grande maioria, senão todos os tratados de investimento bilateral e multilateral têm cláusulas a estipular a possibilidade de os investidores recorrerem a este mecanismo e com que regras. E as suas consequências para os governos têm-se feito sentir: desde as décadas de 1980 e 1990 que se conhecem mais de 900 casos de processos de investidores contra pelo menos 95 países, segundo a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento. Destes, mais de 600 surgiram nos últimos dez anos. Dos 580 casos concluídos, 35,9% foram a favor dos Estados, 28,1% a favor dos investidores, 22,9% terminaram com acordo antes da deliberação, 2% acabaram sem chegar ao fim e, por fim, 10,9% terminaram sem decisão ou acordo. A grande maioria das decisões contra os Estados ascende a milhões de dólares e, chegando até milhares de milhões.
Os exemplos avolumam-se e, entre os mais marcantes, encontra-se a decisão, também do governo alemão, de abandonar gradualmente a produção de energia nuclear depois do desastre em Fukushima, no Japão, em 2011. A empresa energética sueca Vattenfall exigiu uma indemnização ao governo alemão na ordem dos 4,7 mil milhões de euros. O tribunal arbitral decidiu a favor da empresa. No entanto, em 2016, o Supremo Tribunal alemão decidiu que as empresas afetadas pela decisão poderiam receber indemnizações limitadas, nunca tanto como a empresa exigia.
Os casos avolumaram-se e mais de 50 advogados e professores de Direito de todo o mundo publicaram, em agosto de 2010, uma carta aberta a apelar ao fim deste mecanismo, preocupados com o “dano feito ao bem-estar público por este regime internacional”, ao “fragilizar a capacidade dos governos em agir em resposta às preocupações dos seus povos sobre o desenvolvimento humano e sustentabilidade ambiental”. Entre as principais críticas feitas por quem discorda deste mecanismo estão as de colocar em causa a soberania dos Estados e a falta de transparência nos processos.
No entanto, a doutrina diverge e Sofia Martins discorda que a soberania esteja em causa e que haja falta de transparência, garantindo que existem vários mecanismos internacionais para salvaguardar que os árbitros são imparciais. “Há um maior equilíbrio [nos tribunais arbitrais] por nenhum dos árbitros ser cidadão dos países das partes” em contencioso, refere a advogada. Muitas dessas salvaguardas, continua a especialista, são recorrentemente ativadas. No entanto, também mostram o outro lado: os riscos existentes para a transparência.
O que é o IDSDS de que se fala?
Mecanismo A Resolução de Diferendos entre Investidores e Estados surgiu nas décadas de 80 e 90 com os então tratados de comércio e investimento bilaterais e multilaterais – ou de livre comércio. Tornou-se no principal mecanismo para resolver grandes diferendos na economia mundial. As regras podem variar de tratado para tratado e, caso não estejam presentes, o processo pode basear-se nas do International Centre for Settlement of Investment Disputes do Banco Mundial. O tribunal arbitral é sempre composto por um número impar de elementos. Um escolhido pelo investidor, outro pelo Estado e um terceiro por mútuo acordo entre as partes. Os processos podem ser iniciados por qualquer empresa ou cidadão, desde que o Estado visado tenha assinado um tratado com essa cláusula.