A História acontece às pessoas bem mais do que acontece as pessoas fazerem História.
Dito por outras palavras, 99 por cento da humanidade debate-se para entender as circunstâncias onde calha viver e as consequências que lhe acontecem, cujas causas estão muito para além do seu entendimento.
Esta é a verdade básica por detrás da elevadíssima taxa de abstenção eleitoral que se verifica em todo o Ocidente: um número crescente de pessoas convenceram-se de que a sua participação eleitoral é absolutamente irrelevante porque a influência que tem nos desfechos que realmente contam é nula.
No cinzentismo aparente dos programas eleitorais que, parece, conduzem todos ao mesmo desfecho, que consiste em o Estado ter um papel cada vez mais determinante nas nossas vidas e nós não termos nada a dizer sobre isso, em que todas as questões determinantes são apresentadas sob a capa de que não há alternativa para as soluções propostas “por quem sabe”, as escolhas são reduzidas a saber “quem”, que grupo de “quens” nos vai governar, com resultados que conhecemos antecipadamente.
A conclusão mais frequente é a de que “eles” são todos iguais e não vale a pena perder tempo a fazer escolhas cujas consequências são nulas.
Na verdade, não contribui em nada para a genuinidade das escolhas a fazer o facto de que todos os potenciais eleitos nos são propostos pelos partidos políticos existentes, sem que nós possamos ter qualquer intervenção na escolha dos elegíveis.
É um bocadinho deprimente dizê-lo assim, mas as propostas eleitorais que nos confrontam lembram o memorável slogan da Ford quando começou a vender o célebre modelo T: pode escolher qualquer cor, desde que seja preto!
Onde está, no meio de tudo isto, a iniciativa da “sociedade civil”, dos cidadãos, numa democracia representativa que foi há muitos e longos anos sequestrada pelos partidos, que têm o monopólio da escolha dos candidatos?
Onde estão as vias de acesso à política de novos protagonistas, gente que represente movimentos de base, que defenda programas alternativos, que queira introduzir novos temas na agenda politica, para além do pequeno sucesso, sofrido e frágil, do partidelho que elege um ou dois efémeros deputados cuja agenda se esgota, aliás, em dois ou três temas fraturantes?
A resposta simples é: não há! O horizonte que hoje se nos depara é um horizonte bloqueado, sem portas de saída nem perspetivas para além do curto prazo.
Portugal é um país pequeno, amarrado a uma Constituição que prevê quase tudo e fecha quase todas as vias de saída, inserido numa União Europeia da qual emanam cerca de dois terços das leis que nos regem, sem que tenhamos grande coisa a dizer sobre elas, governado por elites dependentes do Estado e com uma classe política congelada em estratos geológicos imutáveis – em suma, onde a evolução das coisas é cada vez mais difícil e mais bloqueada.
Qualquer treinador de futebol sabe que o jogo dura 90 minutos, que a bola é redonda, que há duas balizas, que há dois meios-tempos, que só pode dispor de 11 jogadores e fazer duas substituições, e por aí fora, mas isso não os impede de organizarem o seu jogo, dentro dessas constrições, fazendo escolhas e optando por esquemas de jogo que podem ser radicalmente diferentes.
Da mesma forma, também nós, por muito limitadas que sejam as nossas opções, podemos sempre fazer algumas.
Há mais de 20 anos que a Constituição portuguesa acolheu a possibilidade da existência de círculos eleitorais uninominais – não de candidaturas independentes às legislativas, mas de círculos uninominais. Vinte anos depois, esta possibilidade continua a ser apenas teórica. Na prática, os partidos que podiam implementá-la não a querem, porque mesmo essa pequena alteração podia pôr em causa o seu monopólio de escolha de candidatos.
Um pequeno grupo de cidadãos, do qual faço parte, decidiu dar um modesto passo em frente e propor essa alteração. Não é de somenos, porque pretende alterar o sistema eleitoral português, introduzindo, não na teoria mas na prática, círculos uninominais na nossa vida eleitoral.
Tentamos fazê-lo sem pôr em causa o princípio básico da proporcionalidade, o que implicou fazer algumas escolhas complexas, a primeira das quais é que se mantenha um círculo distrital de listas a par com círculos uninominais, mantendo 230 deputados à Assembleia da República.
Os resultados desta reforma podem ser monumentais: havendo cerca de uma centena de círculos uninominais, haverá centenas de candidatos que, mais do que o aval dos partidos, vão ter de disputar o aval dos eleitores, e isso pode mudar muita coisa.
Falou-se muito nisto, mas nós demos um passo em frente e promovemos uma iniciativa popular para forçar a discussão no parlamento. A proposta, através de petição pública, deu entrada ontem na Assembleia da República.
Já sei que vão dizer que a ideia não é má, tem potencialidades, mas que o momento não é agora, a meses das próximas legislativas, a ver se passam mais 20 anos sem que nada seja feito.
Mas, vejam bem, como – porque, graça a Deus, vivemos numa democracia – há sempre umas eleições a seguir, o momento nunca seria “esse”, seria sempre depois… mas, oh, antes das eleições seguintes, o que não dá. Tem de dar!
E, por isso, um excelente momento é agora, antes das próximas eleições, mesmo que só valha para as seguintes, que são logo ao virar da esquina, em 2023.
Agora que a iniciativa popular, com os seus milhares de assinaturas, deu entrada na Assembleia da República, há pessoas que podem fazer História: os deputados eleitos que lá estão e que podem discutir e votar essa reforma eleitoral.
Se o fizerem, farão História, e será uma boa História.
Advogado, Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”