Se existiu, no princípio do século, um movimento artístico chamado Surrealismo, e se o preceito gregário desse -ismo supõe a partilha comum de sonhos, desejos e aventuras estéticas pelas nebulosas do inconsciente, onde o riso da máscara é mais forte do que a sisudez do rosto que vestimos durante o dia, então a curta vida de René Crevel (1900-1935) servirá para demonstrar que um movimento assim, mesmo quando parece defender apaixonadamente a liberdade e outros píncaros, acaba por ser prisioneiro das quezílias mais rasteiras e, portanto, tão mortal quanto aqueles que, de carne e osso, se julgaram iguais a deuses.
Nascido no seio da burguesia parisiense, de olhos postos na atrocidade “despótica” da cruz (advindo daí a relação conflituosa com todos os credos, entendidos como “belos pretextos para matanças”), Crevel acabaria toxicómano e tuberculoso, tendo sido internado em vários sanatórios. Era ainda homossexual e comunista, numa época obliquamente mais estreita que a nossa para as larguezas afetivas e políticas dessa dupla condição. Acabaria, contudo, por discernir na vida mais um insuspeitado obstáculo: ser surrealista. Porque, por um lado, era olhado de soslaio pela declarada homofobia de André Breton, o santo padroeiro do grupo, que fazia a triagem de quem entrava e saía, do que era e não era verdadeiramente surrealista. Por outro, a filiação ao comunismo tornava-o persona non grata nos círculos da alta sociedade que sentia prazer em frequentar. Não obstante, o seu ar excêntrico, acentuado pelas cores berrantes que combinava para provocar a mãe, tornando-o num “semi-arcanjo e semi-boxeur”, segundo Klaus Mann, ajudá-lo-ia a passar no casting e a ser admitido no grupo responsável pelo “Primeiro Manifesto Surrealista” (1924). A presença no movimento seria, depois, reforçada pela publicação de “O Meu Corpo e Eu” (1925) e “A Morte Difíci”l (1926).
Crevel julgava ser possível conciliar o surrealismo com o comunismo: que o desejo do impossível coabitaria sem atritos maiores com a revolução do proletariado, em busca da libertação da humanidade e contra as tiranias decadentes da burguesia. Salvador Dalí descreve-o como “uma lançadeira entre comunistas e surrealistas; tentava conciliações esgotantes e desesperadas, morria e renascia” (do prefácio de Aníbal Fernandes para O Meu Corpo e Eu, p. 12). Mas esta geringonça utópica ser-lhe-ia fatal: primeiro, uma zanga com Breton, que o impulsionaria a demitir-se do grupo; depois, o episódio sucedido na véspera do congresso da AEAR (Associação dos Escritores e Artistas Revolucionários), manobrada pelo Partido Comunista Francês.
O rastilho acendera com Ilya Ehrenbug. O escritor soviético publicara um texto que ironizava os surrealistas como um grupo afeiçoado “a Hegel, a Marx e à Revolução”, mas sem vontade de “trabalhar”, porque o tempo de que dispunham era preenchido com “onanismo, pederastia, fetichismo, exibicionismo e até sodomia”. Consequência: uma noite, depois do jantar, Breton cruza-se com Ehrenbug a sair de um restaurante e esbofeteia-o. Feito isto, Breton acabaria sendo responsabilizado pela expulsão dos surrealistas do Congresso da Cultura, mesmo depois de Crevel se ter desunhado, numa acesa discussão, para que o grupo voltasse a ser admitido.
Dias depois, a 18 de junho de 1935, num quarto de hotel parisiense, Crevel deixa aberta a boca do fogão. No casaco tinha espetado um papel com o recado: “Agradece-se a incineração. Nojo.” Aos 35 anos, mata-se o autor que, face à escassez de “viagens perigosas” rumo a um verdadeiro “continente”, que exceda os restantes cartografados pelo progresso mundial (deixando os sonhadores sem emprego, segundo Álvaro de Campos no poema “Opiário”), apontara a direção inexplorada: “em si é que o homem procura o mistério” ( “As Irmãs Brontë, Filhas do Vento”, Assírio & Alvim, 2002).
“Na nossa família suicidamo-nos muito” Crevel tinha 14 anos quando, em 1924, o pai se enforcara. O momento atormentá-lo-ia o resto da vida, considerando que a mãe, que no livro “A Morte Difícil” surge traçada a papel químico de uma personagem-tipo horrivelmente burguesa e conservadora, o forçara a testemunhar o corpo pendurado. Assim, os vértices para um triângulo edipiano clássico estão cá todos, demasiadamente polidos, prontos para um decalque nevrótico na senda de Freud. Afinal, foi Crevel quem disseminara a frase “Na nossa família suicidamo-nos muito”, repetida n vezes em “A Morte Difícil”, assim como noutros contextos; e foi ele o único surrealista a dizer que sim à pergunta sobre o suicídio ser “uma solução”, ou que “a inteligência incita ao suicídio”, tido como “um meio de seleção” (“As Irmãs Brontë”).
Contudo, se é fácil cedermos à histeria de entrever na obra os percalços biográficos de Crevel, ou vice-versa, como se isso desvendasse mistérios ou explicasse verdades ocultas e inconfessáveis, é, porém, mais interessante perceber que o próprio mistério da vida, enquanto impulso vital incoercível, indiferente às nossas tentativas de simbolização pela “mentira da arte” (incluindo aqui o “belo naco de vida” que dá pelo nome de “semiconfissões, as piores mentiras”), em vez de desvendar ou explicar seja o que for, acentua esses mistérios e essas verdades. Melhor: cria-os, desdobra-os, reafirmando a vitalidade intrínseca aos próprios textos, aquilo que neles excede todo o sentido e que fulgura sobre nós enquanto engenhoso virtuosismo da palavra, meio de o deslumbramento dar um ar de si, perseguindo “a sensação de ser”.
O deslumbramento começa, desde já, no fascínio tenebroso à volta do pai morto. Reza a lenda que um enforcado tem um orgasmo antes de morrer e que uma mandrágora nasce no lugar onde cai o último jorro de esperma. A sensualidade desta imagem atravessa “A Morte Difícil” de ponta a ponta (salvo seja), conhecendo o pico do fulgor na vivência homossexual do protagonista, Pierre, adolescente, vândalo, terrível, a quem “tudo o que é decente […] parece ridículo”. O retrato vivo, segundo a mãe, de um “degenerado”. Mas se é fácil exteriorizar-se como um rebelde sem tento na língua (a dada altura, provoca a mãe perguntando-lhe se não quer um pouco de cocaína), a verdadeira guerra faz-se contra os seus demónios: não saber “ter mão em nada”, permanecendo “estranho e exterior ao espetáculo”, preso num “aquário de ansiedade” ; sentir uma vergonha de si omnívora, “do seu rosto irregular, caótico”, “dos gestos, entre eles o do amor que só lhe surge como necessário para a sua carne amarrotada sentir melhor um triunfante nojo”.
Confronta-se com a realidade chata e mesquinha da mãe, a Madame Dumont-Dufour, cujos olhos, “à falta de céu”, “tomam como testemunha o teto” . Estes limites estendem-se para lá do perímetro doméstico, balizando os preconceitos e as crenças da moral vigente: “a falta de sorte, a hereditariedade, as más inclinações” – a receita para o insucesso, seguindo os trâmites do naturalismo, os mesmos que deram cabo, por exemplo, dos três Maias queirosianos. “Mas nada disto valeria muito”, concretiza o narrador, “se o referido Pierre não tivesse um esquisito gosto e uma curiosidade (as más inclinações são estas) […] com a sua amizade por homens de uma estranja que nem sabemos qual é”. E, por fim, o diagnóstico fatal, a requentada generalização que eleva o texto à sátira (embora magoada) do real: “A carne é fraca. Estes rapazolas do século XX cedem a todas as tentações da moderna Babilónia, e todos os anos arranjam outras. […] Inventaram-se vícios, bebidas, estupefacientes; e como é que tudo isto acabará?”.
Responde-se a essa angústia com uma ética. “Anormal, degenerado ou louco?” , interroga-se Pierre. Parece-lhe pouco. Haverá mais vícios a testar, mais becos obscuros e voluptuosidades à espera do seu corpo, ávido de porradas mais sujas e violentas do que o desdém entorpecente da mãe, ou a condição onerosamente atávica de ser “a sombra de um monstro, […] destinado a exagerar mais as deformidades da criatura seu princípio” . Por isso, decide sair de casa. Vira as costas a quem acha o amor “uma coisa bastante nojenta”, porque “mancha os lençóis” e “cheira mal”. O amor excede o espartilho das molduras e acha-se na dispersão, na vertigem solitária de quem se esquece de si nos braços de outro, de outros (o caso de Arthur Bruggle, que o ajudou a “descobrir o amor, o país dos esplêndidos tormentos”), cedendo à voragem do desejo, epítome de uma liberdade que, a existir, não pode ser definitiva: “Ser um ponto na multidão. Nada mais. Não deseja mais felicidade do que confundir a sua alma com outras almas num continente anónimo que tem como portos os seus olhos e as suas orelhas, os olhos e as orelhas de todos os homens. Corais de inteligência, os seus próprios pensamentos; corais de carne, as papilas por onde sente o prazer e que muito pouco são perante o indiviso domínio”.
O jogo de espelhos, a tensão indecidível entre o eu e a sua imagem, a compulsão narcísica flagelada pelas agruras da solidão, insistem com veemência em toda a obra de Crevel: “Eu com o ponto de interrogação a pesar-me na cabeça e sem chegar a haver, entre este eu e o espelho, uma auréola suave para enevoar feições que o meu tédio reencontra sempre” (“O Meu Corpo e Eu”). E quando entre o rosto e a máscara o eu se vê destituído da sua própria consistência real, a imagem de Crevel enquanto “suicidado da sociedade”, como o Van Gogh segundo Artaud, parece apaziguar-se. Pelo menos, para os vivos, que (sobre)vivem enquanto os rótulos que põem em tudo (sobretudo, no que não compreendem) fingirem uma validade absoluta. No final do prefácio para “A Morte Difícil”, Aníbal Fernandes, tradutor deste e de muitos livros, responsável por elevar o seu ofício às artes da prestidigitação, cita Artaud, o tal que vingara a morte do pintor holandês com esta acusação: “Ninguém se suicida sozinho” – porque “é preciso um exército de má gente para fazer o corpo decidir-se ao gesto contranatura que é ele privar-se da sua vida.”
Crevel estava sozinho, também, no próprio surrealismo, ao perseverar no género do romance, que os surrealistas religavam com desprezo às convenções que visavam derrubar, no polo oposto às experiências da escrita automática. “A Morte Difícil” é um exemplo dessa audaz insistência, que não é gratuita nem panfletária, mas um exercício contra “uma diminuta renda vitalícia que nada pode contra o tédio”.
Num dos últimos textos recolhidos na edição d’”As Irmãs Brontë”, Crevel escreveu: “A nossa infelicidade, a nossa maldade complicaram tudo. O Maior será quem tiver conservado a força de ser cândido.”