E no entanto, que aconteceu a esse homem que foi um ponto de confluência de todas as tendências de uma estética do Moderno? Que escreveu obras como Manhattan Transfer: Viagem por Nova Iorque, opondo ao naturalismo americano uma multivisão sinfónica inspirada nas experiências de montagem cinematográfica de Eisenstein e de Griffith, ou a trilogia “USA” – The 42nd Parallel, 1919 e The Big Money – numa escrita tumultuosa que tudo deve à imagem do nosso mundo feito de vidas isoladas, à música e à pintura de ritmos e formas quebradas?
Comecemos por aqui, por The Big Money, 1936: “Expulsaram-nos das ruas a golpes de matraca. Eles são os mais fortes. São ricos e fecham-nos as portas: políticos, directores de jornais, velhos juízes, homenzinhos famosos, presidentes de universidades, políticos falhados. Ouvi, homens de negócios, presidentes de universidades, juízes: a América não esquecerá aqueles que a traíram. Compram homens armados e de uniforme, carros da polícia e viaturas celulares. Os juízes servem-lhes os intentos e eles banqueteiam-se à conta do Estado. Eles têm os dólares, as espingardas, as forças armadas e as fábricas. Eles construíram a cadeira eléctrica e contrataram os carrascos para aplicar as descargas eléctricas. Muito bem. Somos dois neste momento. Os homens que estão nos corredores da morte gritaram antes de morrer, mas agora a dor terminou. Os emigrantes, libertos da pressão, imóveis nos seus fatos escuros, repousam na pequena sala mortuária. A cidade está calma. Os homens da nação conquistadora não se vêem nas ruas. Eles venceram. Mas então, por que receiam eles vir para as ruas? Nas ruas vêem-se apenas os rostos dos vencidos. As ruas pertencem à nação vencida. Ao longo de toda a rua, até ao cemitério, onde os corpos dos emigrantes vão ser incinerados, nós enchemos os passeios e aguardamos. Nós somos os vencidos, América.”
Eis John dos Passos entoando um canto fúnebre à memória de dois anarquistas executados nos anos 1920, o homem que de 1914 a 1940 gritaria a revolta e clamaria pela revolução incendiando o país com a sua pena e a sua palavra.
“Desde que pusera os pés no barco, o meu pai passou a ser chamado ‘Comodoro’. E ele chamava à minha mãe ‘Princesa’. Eu era o senhor Sam. Tínhamos como empregados Tom, o cozinheiro, e Alben, o criado particular de meu pai. Eu gostava do Alben. Formávamos os quatro uma espécie de charada que o Comodoro dirigia com indulgência.” The Best Times, 1966
Nem sempre fora assim, no entanto. O pequeno John era filho ilegítimo, uma infâmia na época. Tinha sido exilado com a mãe para o outro lado do oceano, para França, onde aprendeu francês. Uma separação cruel que o marcará, mas tudo acabará em bem. O self-made-man casa-se com a aristocrata sulista, e o adolescente torna-se John dos Passos, estudante em Harvard, sonhador e poeta; porém, a entrada dos EUA na guerra em 1917 irá transformá-lo por completo.
John havia-se alistado no corpo de ambulâncias americano, tal como Hemingway, o futuro autor de Adeus às Armas, no qual relatará a triste realidade que irá conhecer na frente italiana. Passos é enviado para Verdun, que não vive já a grande batalha de 1916, mas onde o horror ainda está muito presente. Contudo, escreve ao amigo e pintor espanhol José Roblès: “Curioso. Sinto-me melhor aqui que na América, onde a hipocrisia impera.”
Não consegue, ainda assim, suportar a guerra e deserta. Para logo regressar e ser enviado para Itália, onde conhecerá Ernest Hemingway. E a guerra termina com milhões de mortos e estropiados. John esconjura a experiência em One Man’s Initiation, 1917 (1920), uma tentativa de apresentar as suas experiências directas da guerra a partir dos seus apontamentos diarísticos, os quais tornarão a ser usados de uma forma literariariamente mais sofisticada em Three Soldiers, 1921, um romance anti-guerra, mas também a descoberta da pintura, tornando-se amigo de Léger.
“Paris, 1919, Paris ritual. Azulejo vermelho, azulejo branco. Um milhão de dólares. Mil milhões de marcos. Mil milhões de rublos. […] República de Montmartre. A pintura, enfim, de La Madeleine. Cézanne, Picasso, Modigliani.”
De facto, em Paris, John dos Passos hesitou muito entre duas vocações, a literatura ou a pintura. Opta pela escrita e tem algo a dizer através dela:
“A união dos trabalhadores é necessária. A revolução gira em torno da nossa torre Eiffel como uma roleta. E as nossas previsões do ano passado são ultrapassadas, desaparecem nos calendários. Faremos todos um ano. Hoje é o primeiro ano. Hoje é o primeiro dia da Primavera e o Sol brilha. Bebamos o nosso café, despertemos os corpos, esqueçamos o vestuário, desçamos as escadas, saiamos bem acordados nesta primeira manhã do primeiro dia do primeiro ano.” 1919.
Com o terceiro livro da sua trilogia, chega a consagração: a Time Magazine dedica-lhe, em 10 de agosto de 1936, honra rara para um escritor, a sua capa, comparando-o a Tolstoi e Balzac. John dos Passos ousara atacar a América industrial, poderosa e feroz.
«[…] O navio abria lentamente caminho através do tempo encoberto. Um ferry-boat passou por eles. À direita, havia um barco de quatro mastros […]. Mais longe, avistava-se outro barco. Na sua frente, viam-se vagamente as luzes dos arranha-céus nova-iorquinos […]. Stuart tinha o copo cheio de uísque e uns binóculos nas mãos. Os olhos brilhavam-lhe.
– Vês a estátua da Liberdade, John?
Parecia que não via nada.
– Tudo está calmo, Jo. É domingo, sabes?
Naturalmente que era domingo. Sentiam-se aborrecidos. Por detrás, os arranha-céus vazios e os longos arcos da ponte de Brooklin perdiam-se na névoa.
– Pois bem, Charlie – diz Stuart, cofiando o bigode -, foi aqui que eles esconderam todo o oiro do mundo. É a nossa vez de lhes tirarmos algum.
– Bem gostava de saber como.
Viam-se muitas pessoas numa enorme doca aberta. Jo estendeu a mão.
– Charlie, voltaremos a ver-nos?
– Foi uma bela guerra enquanto durou.
Por cima do edifício da doca flutuavam as bandeiras americana e francesa. E às portas, grupos de pessoas agitavam os lenços.» The Big Money
Num estilo frio, impessoal, violento, Manhattan Transfer: Viagem por Nova Iorque fora o primeiro grande livro de John dos Passos e o que mais influenciaria Sartre na feitura do seu Caminhos da Liberdade.
O que salva o escritor, o que faz o seu génio, é uma energia prodigiosa e comunicativa que terá no comprometimento político, então cada vez mais próximo da esquerda, extrema, uma justificação, por assim dizer, uma aplicação: o caso Sacco e Vanzetti irá mobilizá-lo e lançá-lo numa luta sem quartel.
Será o caso Dreyfus americano. E escreve o seu «Acuso» no New Masses. Por fim, quando já nada há a esperar, nasce um poema:
Morreram. Venceram os autómatos.
Ficaram inteiramente calcinados.
As suas carnes repousam na terra, em Massachusetts.
Os seus sonhos pairam no vento.
E no dia da execução dos dois anarquistas, John foi preso. Depois de libertado, a URSS recebê-lo-á de braços abertos. No entanto, depressa regressará, não muito convencido, para a América. “Que esperas tu da puta da raça humana?” – pergunta-lhe Hemingway, o amigo que lhe apresentara Kathrin Smith e com quem John se casaria.
Como escreverá mais tarde nas suas memórias, publicadas em meados dos anos 60, John dos Passos apenas quer reter a “boa vida”, a do seu retorno a Paris, com o inseparável Hemingway, mas também com Fitzgerald, a geração perdida dos escritores do pós-guerra.
“Vamos beber o álcool das atmosferas”, disse Cocteau.