25 de dezembro de 1952. O homem que sentia frio e Natal não…

25 de dezembro de 1952. O homem que sentia frio e Natal não…


A Baixa fervia de gente. A Lisboa do consumo. Nunca tantos brinquedos nas montras, agora que a IIGrande Guerra parecia ter recolhido definitivamente as suas garras. Meninos pelas mãos dos pais sonhando com novidades.  E luzes, luzes, muitas e muitas luzes!!!


Natal em Portugal!

Ou, neste caso mais concreto, Natal em Lisboa. 

A cidade fervia de luzes nesses últimos dias de dezembro de 1952. E as luzes eram sinónimo de alegria e motivo de festa.

Um menino pequeno abre os olhos de espanto para uma montra. Há nela uma bola de futebol. No olhar, uma vontade. Seria aquele o seu brinquedo? O pai arrasta-o pela mão ao longo da Rua do Ouro, afasta-o da cobiça. Talvez pense em pontapés certeiros nas vidraças lá de casa e procure qualquer coisa mais suave. O miúdo ameaça um choro. Mas logo outra montra se abre na frente dos seus sonhos.

No largo Camões, a estátua do poeta tem barraquinhas em seu redor. Compras fagueiras de dinheiro escasso. Meras lembranças. Nada que afete o orçamento familiar. O que realmente importa é não esquecer. E por muito, muito pouco, ninguém se esquece de ninguém.

A II Grande Guerra vai, a pouco e pouco, deixando de fazer sentir as suas garras assassinas, criminosas. Ano após ano, surgem coisas novas. Ou melhor, coisas que haviam deixado de existir. Muitas das fábricas de brinquedos da Europa devastada voltaram a laborar. Por isso, há miniaturas de automóveis, comboios elétricos, view-masters, jogos de tabuleiro. E, no entanto, como se fosse pirraça da mais profunda escuridão da alma humana, repetem-se aviõezinhos militares, tanques, carros de assalto, soldadinhos a esmo. 

Por seu lado, um presépio com figurinhas de barro, pode adquirir-se a 10 tostões cada uma: três reis magos, uma Maria e um José, o Cristo nas palhinhas, a vaca e o burro: material indispensável!

Há um lojista que se queixa: “Isto este ano está muito mau. Nem se compara. Ninguém compra nada”.

Mas, convenhamos, são queixas que se repetem ao longo das eras que se somam em eras que em eras vêm, como escrevia o Poeta da Lisboa. E, no entanto, o Chiado está pleno de gente para cima e para baixo como alcatruzes de uma nora invisível.

Um tambor: 7 escudos.

Um iô-iô colorido: um escudo.

Brinquedos de corda: 10 escudos em média.

Bonecas vistosas de encantar meninas: podem chegar aos mil e quinhentos escudos.

Um comboio elétrico, circuito completo, passagem de nível e tudo: dois mil e seiscentos escudos. Da Märklin! A maior especialista do mundo em comboios elétricos!

Mesmo quem nada compra, não foge ao carrossel das luzes, pergunta preços, fixa-se nas vitrinas. As lojas estão repletas, os empregados e as empregadas não sabem para que lado se virarem, a tarefa do atendimento carinhoso exige reforço de paciência.

Ah! A Baixa!

A Baixa do consumo!

Num editorial, o senhor diretor escreve: “O quadro repete-se: todos os estabelecimentos aproveitam a tentação compreensível de atrair mais compradores. Há dezenas de objetos que se torna necessário vender: uns ficaram de outros anos, alguns são verdadeiras novidades. Todos vêm para cima dos balcões ou ficam ostensivamente alinhados nas primeiras filas das prateleiras para atrair a atenção dos clientes e de dar ao vendedor a esperança de mais lucrativas transações – para ele ter também o seu Natal. Nada pode faltar nesta noite. Há que não esquecer os pequenos nadas, bugigangas sem conta que não há quem deixe de comprar. Os brinquedos são aos milhares, de todas as formas e feitios, para todos os preços e gostos: desde a cópia do mais moderno automóvel no qual a criança pode brincar aos motoristas enquanto os pedais lhe desenvolvem os músculos, até à mais recatada miniatura dos velhinhos carros de bois, passando por um sem número de imitações do natural”.

Alheio, há um homem sentado na escadaria da igreja da Nossa Senhora do Loreto. Estica a mão mendicante aos passantes e espera pela caridade que faz parte do espírito da época. Ou talvez não faça.

Quase ninguém perde um minuto que seja com ele. Fernando Pessoa tinha razão: “E toda a gente é contente/Porque é dia de o ficar/Chove no Natal presente/Antes isso que nevar/Pois apesar de ser esse/O Natal da convenção/Quando o corpo me arrefece/Sinto frio e Natal não”.

O homem da mão estendida sente frio.

Já Natal tenho dúvidas…