Idiotas inúteis


A dificuldade de compreensão dos portugueses por parte dos representantes políticos não radica na ausência de vontade, mas na impossibilidade de falarem a mesma língua


O anunciado fim da austeridade terá também trazido o fim da representação política. Os governados já não acreditam nos governantes. Os governantes duvidam de uma realidade que resiste aos discursos políticos. Os que se governam são cada vez menos e governam cada vez mais (parece que é uma coisa assim como na América). Os sindicatos que promovem manifestações não acreditam nos manifestantes não sindicalizados a quem ocorra promover manifestações sem recorrer aos préstimos dos sindicatos. Os polícias infiltrados junto dos manifestantes não sindicalizados são os únicos que têm certezas quanto às vantagens do sindicalismo, fiéis ao lema: um polícia, um sindicato, na esperança de que amanhã haja mais sindicatos do que polícias (pelo menos na polícia).

O que verdadeiramente separa os portugueses, mais do que a orientação política, a classe social, o clube desportivo ou a escolha do dentífrico, é a língua portuguesa. Não há contrato social que possa ser negociado e cumprido numa língua que não é compreendida pelas partes. Seguem-se uns poucos de exemplos recolhidos numa manhã passada, contra vontade, em frente a um televisor numa repartição pública que se anuncia dedicada ao fornecimento de serviços hospitalares.

“As chamas estão confiadas ao armazém” (repórter da TVI24). “O incêndio mais mortal de sempre” (um outro repórter, agora na TVI). “Este governo vem na sonda dos anteriores” (dirigente sindical ouvido pela SIC). “A carrinha albarroou a outra viatura” (correspondente da CMTV). “Os números dos acidentes são muito volúveis” (oficial da GNR na tradicional antevisão da operação Natal na RTP). “Desfraldaram as expectativas das pessoas” (autarca indignado, na RTP3). “Peço que esta Senhora seja escortinada” (dirigente de uma ordem profissional na RTP). “Sem rei nem rock” (escrito no Público, sem ser título ou ironia). “Acusado de condutas lascívias” (rodapé da CMTV). “As avós do marchant eram irmãs” (rodapé de um programa cor-de- -rosa que se referia a um figura pública do mesmo universo e que não é conhecido por ser marchista ou prócere de Emmanuel Macron). “Presos antes que cometam atropelias” (grevista ouvido pela SIC Notícias). “Várias epidemias a vetaram ao abandono” (título de um semanário, mostrado em grande plano na revista de imprensa da SIC). “Vamos manter os pressupostos do Estado” (SIC Notícias, traduzindo em legenda a promessa feita pelo primeiro- -ministro espanhol, Pedro Sánchez, de manter o orçamento de Estado no país irmão). “Oprah Winfrey fez revelação inédita” (mais um título jornalístico na revista de imprensa da RTP). “O clube visitante abriu as hostes e marcou primeiro” (comentador desportivo na Sport TV).

Segundo a lenda, Madre Teresa de Calcutá pregava a caridade sentida. A dádiva, para ser valiosa, teria de ser sofrida, seguindo o mote “dá até que doa”. Admitindo que as palavras ferem e que o mau uso da palavra fere ainda mais, não será possível invocar uma qualquer legítima defesa de terceiro em nome da língua portuguesa? Não será possível, como concretização de um desejo festivo para o novo ano que se adivinha, desenvolver um projecto de cooperação entre a Academia das Ciências portuguesa e a Comissão para a Promoção da Virtude e a Prevenção do Vício da Arábia Saudita? As sanções pelo mau uso da língua deveriam ser bárbaras como aquelas a que, no passado, eram submetidos os alunos das escolas primárias, obrigados a conjugar por escrito todos os tempos dos modos de vários verbos.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990