As diligências que na manhã de ontem culminaram na detenção de oito pessoas suspeitas do furto de armas em Tancos já tinham começado na noite de domingo, com diversas vigilâncias aos alvos. A operação foi desencadeada pela Unidade Nacional Contra o Terrorismo (UNCT) da Polícia Judiciária e pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). O lado visível desta operação, liderada pelo procurador, Vítor Magalhães, iniciou-se no entanto ontem, pelas sete da manhã, com buscas domiciliárias aos suspeitos de terem participado no assalto aos paiolins da base militar, a 28 de junho de 2017.
A investigação – mais de dois anos depois de ter arrancado e depois de ter transposto os vários obstáculos que, propositadamente, se atravessaram no seu caminho – está agora a um passo do fim. Foi o próprio João Paulino – um ex-fuzileiro que está detido há cerca de três meses por ter combinado com a PJ Militar e a GNR de Loulé devolver voluntariamente as armas se estas não os denunciassem aos homens da UNCT, o que culminou numa encenação autorizada pelo topo da hierarquia militar – quem acabou por entregar o jogo.
Ao que o i apurou, entre os arguidos está um militar ainda no ativo – ontem ouvido – que a PJ suspeita ser o autor moral do crime e que terá passado informação privilegiada sobre o interior da base, nomeadamente o facto de o sistema de videovigilância não funcionar – o que permitiu ao grupo liderado por Paulino uma entrada e saída sem percalços do recinto militar.
Uma “toupeira” do Exército Conhecedor das fraquezas da tropa, o militar terá sugerido como data H para o assalto à base o dia do jogo de futebol que opôs Portugal e o Chile para a Taça das Confederações, a 28 de junho de 2017. Nesse dia, enquanto os militares não descolavam os olhos do jogo da seleção nacional, Paulino, que até aí vivera apenas do lucro chorudo gerado pelo tráfico de estupefacientes, a par das rotinas da base, corta tranquilamente um dos lados da vedação de Tancos e, com os seus cúmplices, invade o recinto em direção aos dois paióis que guardam o armamento militar, defendidos por cadeados “de trazer por casa”, simples e decadentes.
Como numa brincadeira de crianças, o dealer, montado no seu BMW, retira-se do local seguido pelos carros dos seus cúmplices, carregados com um arsenal bélico que tem de tudo: mais de uma centena de granadas de mão ofensivas, 44 lança-granadas, foguetes descartáveis M72 LAW, 18 granadas de gás lacrimogéneo e 1450 cartuchos de munições de nove milímetros.
Num quarto de hora, o grupo encontrou poiso para o armamento num local improvável: a 35 quilómetros de Tancos, a propriedade da avó de Paulino servia em beleza como esconderijo para o material de guerra, enquanto não encontrassem comprador. Os proveitos do negócio seriam repartidos por todos, incluindo, claro, o mentor da ideia, o militar de Tancos que travara conhecimento com Paulino num bar que este, à época, geria em Ansião.
Recorde-se que, três meses antes, a informação de que um potencial assalto estaria a ser planeado a um quartel militar chegara à PJ do Porto através de Paulo Lemos, de alcunha o “Fechaduras”, mercê de ter trabalhado vários anos numa empresa de chaves, na capital nortenha. Este alertara que Paulino o aliciara para arrombar uns paióis militares, sem lhe dizer a localização precisa.
O caso ficara nas mãos da UNCT, que avisara de imediato a PJ Militar. Na altura abriu-se um processo e foram pedidas escutas, mas o juiz de instrução Ivo Rosa considerou que existiam poucos elementos para autorizar a diligência e a investigação ficou em banho-maria até ao furto.
O assalto e a guerra entre as polícias Após o assalto a Tancos, com o país em alvoroço e o exército em cheque, a PJ Militar, que considerava que a resolução do crime era da sua alçada, por despacho da Procuradoria-Geral da República fica apenas a coadjuvar a UNCT. Os problemas começam quando a PJ informa os parceiros que vai deslocar-se ao Algarve, onde residia Paulo Lemos, para falar com o informador. Enquanto a autoridade militar considera que deve estar presente na diligência, a civil recusa, alegando que, para o efeito, muitos homens iriam inibir o interlocutor.
Contra a lógica da lei, o diretor da PJ Militar, coronel Luís Vieira, que entretanto foi detido, abre uma investigação paralela. Com boas relações de trabalho com a GNR de Loulé, os seus homens contactam-na para obter informações sobre Paulo Lemos. A sorte parecia sorrir--lhes. Um dos elementos daquele destacamento, Bruno Ataíde, era unha e carne com o cabecilha do grupo de assaltantes a Tancos e é precisamente a ele que liga para obter informações sobre Lemos.
Em dois tempos, o ex-fuzileiro, que nunca imaginara as proporções que o caso ia ter, com receio de ser descoberto, acaba por se denunciar, revelando o local onde tem as armas escondidas. O acordo feito com a PJM e a GNR era claro: entregava as armas, mas estas polícias não podiam falar à PJ, que tinha a investigação formal, do seu nome. E assim começou a farsa, que a PJ acabou por desmascarar num inquérito feito para apurar o estranho achamento das armas.
A confirmação da farsa A PJ desconfiou desde o primeiro instante da forma como as armas acabaram por aparecer na Chamusca e da chamada de alerta alegadamente feita para o piquete da PJ Militar a dar a localização do arsenal. E as escutas acabaram por confirmar as suspeitas.
Numa conversa entre João Paulino e um dos outros membros do gangue, António Laranjinha – um dos detidos na operação de ontem -, é referido o acordo feito com a PJM para ocultar os nomes destes assaltantes. Ao amigo, Paulino é claro: “Eles passaram… a história que passou foi que eles encontraram aquilo numa investigação que tem ligação a outras coisas, completamente… um processo de uns ciganos do Porto.” E Laranjinha mostra estar por dentro: “Sem querer apanharam aquilo…” E quando questiona Paulino se não terão mesmo envolvido o nome de ninguém do gangue, a resposta que recebe também não deixa margem para dúvidas: “Zero… zero…”
Como o semanário “Sol” já noticiou, uma das dificuldades que a investigação da PJ sentiu para desvendar a farsa montada pela PJM foi uma fuga de informação. Os investigadores acreditam que o ex-diretor nacional da PJ, Almeida Rodrigues, terá dado o alerta ao diretor da PJM – que se manterá em prisão preventiva – de que havia escutas.