No Verão de 2016, Passos Coelho recomendou aos seus colaboradores que gozassem bem as férias, já que em Setembro vinha aí o diabo. Conforme se sabe, o diabo não chegou e o país permaneceu embalado num onda de reversão das reformas com que os partidos da geringonça iam sucessivamente satisfazendo as suas clientelas políticas. Só que essas clientelas exigiam sempre mais e, para as satisfazer, era necessário deixar degradar os serviços do Estado a um tal ponto que ele deixava de desempenhar as suas necessidades básicas essenciais, como a justiça e a segurança. Isso não importou aos partidos da geringonça nem ao governo, confiando que era sempre possível aumentar ainda mais os impostos e, no limite, até satisfazer as funções básicas do Estado através do recurso a taxas, como a taxa de protecção civil. Era evidente, no entanto, que tal não era possível, e os serviços do Estado foram conhecendo uma degradação cada vez maior, como é visível no sector da justiça, no Serviço Nacional de Saúde e na área da protecção civil.
No sector da justiça, além de uma greve dos funcionários judiciais, assistiu-se pela primeira vez em 13 anos a uma greve dos juízes que, provavelmente, irá ser seguida de uma greve dos magistrados do Ministério Público. Ao mesmo tempo, também os guardas prisionais entraram em greve, prejudicando os encontros dos presos com as suas famílias na época de Natal e até o contacto daqueles com os seus advogados. Em consequência disso, houve protestos dos presos nos diversos estabelecimentos prisionais do país. Mas a resposta da ministra foi absolutamente inconsequente, limitando-se a dizer que o Natal não era uma época propícia para greves.
No sector da saúde, a situação é gravíssima. Os enfermeiros entraram em greve, levando ao adiamento de cirurgias que não se sabe quando vão ser reprogramadas. E a situação nos hospitais pediátricos é assustadora. No Porto mantém-se adiada a construção da ala pediátrica do Hospital de São João, que continua a funcionar em contentores, só se prevendo que a situação venha a ser resolvida em 2020. Em Lisboa, os chefes de urgência do Hospital de Dona Estefânia demitiram-se por não ter sido cumprido o programa de contratação de médicos estabelecido, levando a que o bastonário da Ordem dos Médicos falasse em risco de “colapso” dessa urgência. Mas a ministra da Saúde desvalorizou as demissões no parlamento, dizendo que “apenas tenho informações que me vão chegando”. Pelos vistos, o público está mais informado do que a ministra sobre o que se passa nesse hospital.
Mas o sector da protecção civil é aquele que suscita maiores preocupações. Depois dos incêndios de Pedrógão Grande e da Lousã em 2017, que evidenciaram uma absoluta falta de eficácia dos serviços de protecção civil, o governo apenas conseguiu evitar que houvesse vítimas em Monchique através da evacuação forçada das populações. Mas a inoperacionalidade dos serviços de protecção civil continua a ser altamente visível. Há dias caiu uma estrada em Borba, causando cinco vítimas, e a única coisa que o primeiro-ministro fez foi imediatamente alijar as responsabilidades para a autarquia. Agora ocorre um acidente mortal com um helicóptero do INEM, vitimando quatro pessoas, em que mais uma vez a Protecção Civil se mostra completamente inoperacional. Dá-se um alerta de queda de um helicóptero às 18h38 de um sábado, mas a Protecção Civil só o recebe às 20h09 e os meios de busca e salvamento só chegam ao terreno duas horas depois. Como é possível que, estando em causa um helicóptero destinado ao transporte de doentes graves, possa ocorrer uma falha desta natureza? Se o Estado nem sequer consegue proteger aqueles que prestam socorro em emergências, quem conseguirá proteger? Isto só demonstra que os cidadãos não podem estar tranquilos com o funcionamento dos serviços que deveriam protegê-los, mesmo depois de pagarem cada vez mais impostos ao Estado para esse efeito.
O discurso da propaganda oficial deste governo é o de que conseguiu salvar o país da austeridade graças à política de São Mário Centeno, o santo milagreiro oficial. Mas aquilo a que o país assiste paulatinamente, graças às suas cativações e ao subfinanciamento de serviços públicos essenciais, em benefício das clientelas políticas da geringonça, é a uma descida aos infernos. Hoje, Portugal pode justamente exibir à entrada a frase que Dante colocou como dístico do Inferno: “Vós que entrais, abandonai toda a esperança.”
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990