Ditados populares, expressões idiomáticas, provérbios, adágios, anexins e outros mais ratos no porão da língua vão a par com o saber e a calhandrice de um povo; espelho e fisga, vivem na ponta da língua, à janela como os velhos, espreitando a oportunidade de deixar cair um vaso, uma rima que arrume um laço no caos e no absurdo que compõem a vida. E de tão vasto o repertório, vai do mais inusitado ao mais ingénuo, da imprecação e sem-vergonhice às pérolas que tantas vezes se perdem com os porcos, e, como bem se vê, no que respeita ao homem nunca faltou a ancestral companhia dos (outros) animais; fosse para o guiar, amparar, servir ou apenas sofrer para seu deleite. Por isso mesmo, este catálogo exuberante, revisto e aumentado ao longo dos séculos, tem o seu quê de bestiário. E se o assunto veio à baila por uma frouxa razão, isso não implica que nos atenhamos às miuçalhas, pois o caso é fértil e, como a procissão deixou faz muito o adro, já a indignação só se serve guisada, com ovo a cavalo, como é próprio de coisa requentada.
A culpa foi da PETA, uma organização não governamental dedicada aos direitos dos animais, que lançou um desses reptos inanes por quererem enfiar tudo no curral da literalidade, sem darem folga para o que há de mais profundo e gracioso na proximidade entre o homem e os animais. “Parem de usar linguagem antianimal”, foi aquilo de que se lembrou a PETA, pregando os usos idiomáticos à tábua para denunciar a forma como estes perpetuam uma lógica de violência sobre os animais. Já o PAN apanhou por tabela. O partido que conseguiu furar as cerradas fileiras da composição da Assembleia da República logo sentiu no lombo as estocadas da imprensa nacional, e não só houve até títulos que sugeriam que o partido apoiava a iniciativa de retirar os animais dos provérbios como se sublinhava que o seu único deputado, André Silva, está já munido de coloquialismos alternativos para não se ver desarmado em eventuais trocas de galhardetes.
Afinal, como se vai ver, este até foi um exemplo em que aquele partido deu mostras de ser bem mais contemporizador do que aqueles que logo fizeram dele um alvo para os seus jocosos arremessos. A PETA defendeu que “as palavras importam” e que a linguagem “evolui à medida que evolui o nosso entendimento de justiça social”, e o alarido que a sua publicação provocou prendeu-se com algumas sugestões de expressões usadas regularmente por todos que poderiam ser rendidas por outras mais em linha com a tal evolução na forma como hoje são encarados os animais, que até há bem pouco tempo não diferiam, para o ordenamento jurídico português, de meras coisas. Ora, o PAN nem disse que acompanhava a proposta da organização norte-americana e nem sequer pôs sobre a mesa a hipótese de apresentar qualquer iniciativa no sentido de alterar os provérbios ou fosse o que fosse. Mais: num comunicado em reação à controvérsia que se gerou, esta força política que tem como bandeira a defesa dos direitos das pessoas, dos animais e da natureza frisou que este “não é um tema prioritário na sociedade portuguesa”. Contudo, disse entender que “atualmente existe vontade de reflexão social sobre este tipo de questões associadas a discursos que veiculam a violência, de forma mais ou menos consciente, reflexão que pode ser relevante para as/os ativistas que trabalham nesta área”.
No seu comunicado o PAN denunciou ainda a forma como alguns órgãos de comunicação social deturparam a sua mensagem, através de “interpretações com contornos políticos perigosos e analogias a situações de fundamentalismos e autoritarismos que não correspondem à verdade”. Mesmo alguns jornais que habitualmente praticam um certo decoro montaram o ridículo e extenuaram o animal de tanto lhe meter as esporas. E, uma vez mais, puseram as redes sociais à frente dos bois.
Se são risíveis e, portanto, inócuas, as sugestões da PETA passam por alimentar os dois coelhos que hoje se matam com uma cajadada – em inglês, são dois pássaros que se matam com uma pedra, e a solução seria substituir a pedra (stone) por um scone -, ao passo que o célebre “agarrar o boi pelos cornos” passaria a um “apanhar a flor pelos espinhos”. Outros exemplos não são tão fáceis de reproduzir, mas orientam-se pelo mesmo princípio de alívio dos animais deste suposto rebaixamento idiomático.
Se a “campanha educativa” dificilmente surtirá o efeito presumido, o certo é que a organização que deve a sua fama ao caráter tantas vezes chocante das ações de protesto que assume contra o uso de animais para alimentação, vestuário ou diversão soube desta vez captar a atenção do globo e assaltar os cabeçalhos da imprensa mundial, com uma simples publicação na rede social que, entre pios e trinados, às vezes origina explosões. E a este respeito tem mais apresto hoje que nunca aquela constatação de Camilo de que nas cidades já não há sentimento de originalidade nenhuma. Dizia ele que “as paixões de lá, boas e más, têm tal analogia, que parece haver uma só manivela para todos os corações”. Assim, tanto quem se ri, quem não deixa escapar uma oportunidade de fabricar uma punchline (ou laracha) como quem se exalta e só barafusta dá sinais de uma cultura que vive de apoquentar–se com coisas de nada, que toma de assalto ninharias para fazer ali a justiça que falta nas questões sérias, e por tudo e por nada logo estala “a verbosidade estrondosa”, “as infladas objurgatórias ao vício, ou panegíricos, tirados à força da violentada consciência”.
Para antologia, fica aquela que terá sido porventura a mais bem esgalhada das invetivas que apareceram do lado luso das redes sociais: “’Podem tirar o cavalinho da chuva’, ‘engolir sapos’ e ‘chorar lágrimas de crocodilo’ que eu já ando há ‘muitos anos a virar frangos’ para ‘fazer figura de urso’ e me importar com ‘vozes de burro’ que ‘não valem um caracol’, até porque ‘os cães ladram e a caravana passa’. Livra, que ‘mais vale alimentar um burro a pão-de-ló’ que ligar a estas ‘baratas tontas’ que ‘não fazem um boi’.” Esta frase lia-se na página “Governo Sombra” – não o quarteto que anda em procissão entre a galhofa, a opinião e a sonsice pelo país, levando a televisão e a rádio, mas uma página que prima pela sátira política e desfere golpes em todos os sentidos do espetro político nacional.
Este assunto teria, no entanto, adquirido uma outra espessura se uma vez mais, ao invés de nos ficarmos pela rama, fosse feita uma pega valorosa da tacanha investida da PETA. E então seria útil ler o ensaio de John Berger, “Why Look at Animals?”, onde nos lembra que o primeiro motivo de uma pintura humana foi um animal e é provável que a primeira tinta que se usou tenha sido o sangue desse ou doutro animal, mas que, mesmo antes disso, não é irrazoável supor que a primeira metáfora criada pelo homem tenha sido um animal. Berger faz-se valer de Rousseau e do seu “Ensaio Sobre a Origem das Línguas”, onde este defende que a própria língua despontou da metáfora: “Tal como as emoções foram o que primeiro motivou o homem a falar, as suas primeiras elocuções foram tropos (metáforas). A linguagem figurativa nasceu primeiro, e os verdadeiros significados só se descobriram depois.”
Face a isto, aquilo que parece escapar à compreensão evoluída de uma organização como a PETA é que há riquezas muito maiores do que a violência para a qual aponta um certo sentido literal da nossa literatura oral, e aí, nesses antigos usos, está impressa uma ancestral relação de proximidade em que o homem aprendeu com os animais a conhecer--se, e que assim nasceu “um dualismo existencial” cujos sinais persistem até hoje na forma como são tratados os animais, ao mesmo tempo “usados e adorados, criados e sacrificados”. E é aqui que a PETA parece abdicar de todo o discernimento pois, como vinca Berger, o que distinguia os homens dos animais, nesses tempos remotos em que partilhavam laços de tão íntima dependência, era a capacidade humana para pensar através de símbolos – “uma capacidade inseparável do desenvolvimento da linguagem, no qual as palavras não são meros signos, mas significantes de algo mais do que eles mesmos”. Ora, os primeiros símbolos foram animais e, por isso, o que nos distinguiu deles “nasceu dessa relação com eles”.