Véspera de Natal, dez da noite. Uma equipa de investigadores suecos analisou a incidência de ataques cardíacos no país nas épocas festivas e em torno das datas de grandes eventos desportivos e descobriu que há sistematicamente um pico de casos no dia 24 de dezembro, em particular na noite de Consoada – um resultado que pode servir de alerta para países com tradições culturais semelhantes, acredita a equipa liderada por David Erlinge, do departamento de Cardiologia do Hospital Universitário de Skane, em Lund. “As pessoas precisam de ter a consciência de que existe um risco acrescido que pode ser associado ao stresse emocional ou aos excessos alimentares que podem ocorrer nas épocas festivas, e que têm de ter maior cuidado com os familiares e amigos mais velhos ou doentes”, diz o responsável pela investigação.
280 mil casos analisados
O estudo – um dos destaques da edição de Natal da revista médica “British Medical Journal”, divulgada ontem – cobriu um período de 16 anos e é um dos mais abrangentes feitos até à data sobre este tópico. Ao todo foram analisados 283 014 casos de enfarte e os investigadores tiveram em conta um período de 15 dias antes e depois do Natal, Ano Novo e Páscoa. Incluíram também a celebração do solstício de verão – o Midsummer sueco – e ainda as semanas antes e depois de grandes eventos desportivos como campeonatos de futebol ou as Olimpíadas, dado que já estava documentado um aumento de casos em alturas de maiores emoções.
Se já era conhecido o aumento dos enfartes nos meses mais frios do ano e uma maior incidência de enfartes de manhã, depois do despertar, os investigadores descrevem um novo padrão. Só está validado na população sueca, mas é significativo: na época entre o Natal e o Ano Novo apontam para um aumento médio de 15% no risco de ataque cardíaco, sendo na véspera de Natal o risco 37% superior ao dos outros dias de dezembro. E, se geralmente há mais enfartes de manhã, no caso da véspera de Natal as ocorrências aumentam à noite, com um pico às 22h. No Ano Novo verifica-se o contrário: há mais enfartes no primeiro dia do ano que na noite de réveillon.
A época da Páscoa não foi associada a qualquer risco acrescido e, ao contrário do que seria de esperar, os investigadores também não detetaram mais casos de enfarte a coincidir com grandes eventos desportivos. Por outro lado, o Midsummer, que os suecos celebram com grandes festas de família ao ar livre, também foi associado a um aumento de ataques cardíacos, com o risco a subir 12% em relação aos outros dias de junho. Idosos com mais de 75 anos e historial de diabetes e doença cardíaca são o grupo mais vulnerável, concluem.
Como explicar os resultados?
David Erlinge, antigo presidente da Sociedade de Cardiologia da Suécia, explicou ao i que os mecanismos exatos que poderão explicar o risco acrescido nestas alturas do ano ainda não estão bem estudados, mas os fatores psicológicos e culturais funcionam como gatilhos.
O stresse emocional associado aos momentos de convívio é uma das variáveis. “O excesso de comida e álcool e longas viagens também podem aumentar o risco de ataque cardíaco”, continua o investigador. “Um dos aspetos interessantes é o facto de o risco aumentado durante a manhã, que domina no resto do ano, ser invertido no Natal, em que há um risco acrescido à noite – o que indica que o stresse e a alimentação durante o dia podem ter desencadeado os enfartes. No Ano Novo, o risco é maior no primeiro dia do ano, e não à noite. Provavelmente, a privação de sono e a exposição ao frio durante a noite, assim como comer e beber a horas mais tardias, podem ser a causa”.
A vantagem de conhecer esta realidade é grande, salientam no estudo. “Perceber os fatores, atividades e emoções que precedem estes enfartes do miocárdio e como se distinguem dos enfartes de outros dias do ano pode ajudar a desenvolver estratégias para gerir e reduzir este tipo de eventos.”
Verdade em Portugal?
Por cá, não existem dados tão específicos, mas a ideia de que há mais ataques cardíacos nos meses de inverno também já foi objeto de algumas análises.
Um estudo da Universidade de Coimbra, com base em 60 mil episódios de internamento hospitalar devido a enfartes entre 2003 e 2007, concluiu que o número de enfartes em Portugal atinge um pico em dezembro, sendo sobretudo nos idosos que se nota um maior risco de enfarte nos meses mais frios do ano.
Rui Cruz Ferreira, cardiologista e diretor do Programa Nacional para as Doenças Cérebro-Cardiovasculares da Direção-Geral da Saúde, confirma este padrão. Já se, em Portugal, também poderá haver um pico de casos em torno do Natal, por agora não há estudos que o atestem. “Sabemos que são dias mais trabalhosos nos hospitais, mas não existe essa estatística. Não excluo a hipótese, mas teria de ser estudada”, disse ao i o médico.
Para ter dados mais concretos sobre a realidade portuguesa, Rui Cruz Ferreira adianta que uma das propostas que estão em cima da mesa no âmbito do programa nacional é a criação de um registo que passe a centralizar dados sobre todos os casos de enfarte que ocorrem no país. “A proposta está feita e a ideia seria ter o registo operacional em meados de 2019, passando a compilar todos os casos de enfarte do miocárdio daqui para a frente.”
Consensuais são, por agora, as recomendações à população, que nunca são demais lembrar. Evitar grandes picos de tensão emocional, os doentes crónicos terem o cuidado de não descuidar a medicação mesmo quando os dias fogem à rotina e manter a tensão arterial controlada são alguns dos conselhos do cardiologista.