Rui Lourido. “Esta rota marítima poderá dar a Portugal a centralidade que não tem há séculos”

Rui Lourido. “Esta rota marítima poderá dar a Portugal a centralidade que não tem há séculos”


O presidente do Observatório da China defende que Lisboa deve diversificar as suas alianças sem alienar a União Europeia


O presidente chinês, Xi Jinping, esteve cá numa visita de Estado para fortalecer as relações com Portugal. Até onde devem ir essas relações?

Devem ser fluidas, de acordo com os interesses sociais, económicos e políticos de cada um dos países, e as metas são o respeito e benefício mútuos. Não há baias nem limites para que os países se relacionem por o objetivo principal ser o benefício de ambos os povos. Temos mais de cinco séculos de relacionamento permanente com a China. Chegámos [ao país] em 1513, ao Rio das Pérolas, o de Cantão, e estabelecemo-nos nas praias de uma pequenina península que mais tarde veio a chamar-se Macau, e essa presença deveu-se ao interesse mútuo, quer dos chineses quer dos portugueses. Não foi uma ocupação militar, não foi uma ocupação de facto, mas um interesse que ambos os países tiveram no comércio. Vinte anos depois da criação da RAEM [Região Administrativa Especial de Macau], assiste-se em Macau ao respeito pela tradição e património deixados pelos portugueses e ao aumento da presença portuguesa na região. 

Também se vê hoje um aumento da presença chinesa em Portugal. 

O governo chinês tem interesse em preservar essa presença. Portugal continua a ser um interesse para a administração regional de Macau por conseguir dizer à administração chinesa: “Atenção, somos muito pequeninos, mas não temos só o casino, temos acesso direto aos mercados europeu, brasileiro e africano através do português.” 

Um dos temas mais debatidos com a visita tem sido a relação de Portugal com a iniciativa chinesa Uma Faixa, Uma Rota. Qual o contributo que Portugal pode dar?

Esta visita é uma forma de se elevar as relações, em intensidade e benefícios. Portugal tem muito a ganhar com a participação de pleno direito nesta rota marítima e terrestre da seda. Não é que Portugal vá integrar-se numa iniciativa chinesa. Ela foi proposta pela China ao mundo. É aberta, não estão fechados os países que devem participar. Esse é um dos grandes desafios que a comunidade internacional deve ultrapassar: a forma de se integrar os EUA nesta rota. Este itinerário liga a plataforma euro-asiática, mas também a americana e a africana. 

Há quem não veja essa relação como benéfica para a União Europeia. A Alemanha desconfia muito e Espanha já recusou participar. Portugal vê-se numa situação de escolha entre alianças?

Portugal não se encontra numa posição de optar por este ou por aquele. Não é verdade que Espanha não esteja na Rota da Seda, não assinou o memorando, mas assinou centenas de protocolos de empresas suas com a China para promover o porto de Algeciras e as regiões de Navarra e Aragão. Na rota terrestre da seda já chega a Madrid um comboio vindo da China, com mercadorias, de 15 em 15 dias. O seu empenho é muito superior ao português. 

Portugal vai assinar um memorando de cooperação e Espanha recusou-se a fazê-lo.

Sim, é uma questão política. Portugal é o quinto maior recetor europeu de investimento chinês – antes dele está o Reino Unido, a Alemanha, a França e a Itália, que o criticam. Se analisarmos bem o que está por detrás da crítica é que esta rota marítima poderá dar a Portugal a centralidade que não tem há séculos. O nível do comércio dos portos do norte da Europa, que hoje dominam, desceria e Portugal passaria a ter essa primazia. Mas Algeciras está a concorrer connosco e não quer que seja o Porto de Sines a fazê-lo. 

Houve pressões do norte da Europa para que Portugal não cooperasse?

Sem dúvida nenhuma. É dito que a França enviou uma mensagem ao governo a dizer que ficaria desiludida se Portugal entrasse. A França é o terceiro país com maior investimento chinês; Portugal é o quinto. 

Porque acha que isso acontece?

Porque, naturalmente, não querem concorrência no seu mercado.

A Rota da Seda pode abrir brechas nas históricas alianças de Portugal, a NATO e a UE? 

Portugal é um país autónomo e responsável e não pode alienar as suas relações com a Europa e os seus aliados. Deve concentrar-se no desenvolvimento do país e, para que tenha uma maior voz e visibilidade na Europa, tem também de ter peso económico, que lhe é dado precisamente pela diversificação das suas relações. O mundo está de tal modo complexo com as tensões militares que os EUA provocam, elas são de tal forma fortes que Portugal tem de agir pelos seus interesses geopolíticos, que são no Atlântico, África e Brasil. A nossa zona económica exclusiva é das maiores do mundo, devendo participar em todas as iniciativas internacionais, nomeadamente a da Rota da Seda. Para isso, o Porto de Sines, de águas profundas, tem de ganhar escala e a ligação com a linha ferroviária europeia tem de ser feita – e o investimento chinês pode ser um grande auxílio para um país que não tem capacidade económica imediata. A nível das redes elétricas, Portugal, que é dos mais inovadores em energias renováveis, poderá coligar a sua rede elétrica à de Espanha, mas também à do norte de África. 

A Rota da Seda poderá fazer com que a China dispute o Atlântico com os EUA? 

Não penso que a China tenha a pretensão de substituir os EUA nos espaços onde estes se encontram. O que a China pretende é recuperar a presença no mundo que já teve através da sua economia e das condições de vida do seu povo. 

Transformar o sistema internacional unipolar em multipolar? 

Não só multipolar, mas aberto, ou seja, que o mundo e os mares não sejam propriedade nem da China, nem dos EUA, nem da Rússia ou UE, mas que se estabeleça uma relação comercial, política e diplomática em que a circulação de pessoas e bens seja livre. Temos os Açores e a Madeira e é extremamente positivo que os chineses possam investir em centros científicos portugueses, como na ilha de Santa Maria, com o centro de investigação marítima e espacial. As nossas plataformas atlânticas são uma mais–valia para este relacionamento. 

Isso não poderá colocar em causa a NATO?

Não, mas pode despertar um renovado interesse norte-americano pela base das Lajes, que está praticamente inerte e não dá à população da ilha o interesse que antes tinha. Ou os EUA investem ou Portugal deve lançar internacionalmente as capacidades produtivas se houver investidores, sejam franceses ou outros. Não é substituir parceiros, mas integrar novos na relação económica e científica que se tem. 

Vê a Rota da Seda como estratégia económica e política da China para contrabalançar os EUA no mundo?

A China é uma nação com cinco mil anos. Tivemos 19 séculos em que a grande maioria do produto interno bruto criado pela economia-mundo foi chinês, com o segundo a ser o indiano, depois, uma série de outras, e a Europa vinha lá para trás. Com a Guerra do Ópio, o Ocidente conseguiu dominá-la e destruir-lhe a economia por um século e meio. No séc. xx, com a criação, em 1949, da República Popular da China, dá-se uma dignificação do povo chinês, que começou a recuperar as suas condições, e Pequim recupera hoje uma posição que antes detinha na economia-mundo. Nos textos que Xi Jinping apresentou ao público – e só podemos julgar o que está escrito -, defende-se um paradigma de relacionamento amistoso, pacífico, comercial, económico e social dos vários países. A China abre concretamente esta iniciativa, apresentada em 2010, à participação de qualquer país, inclusive dos EUA. Portugal faz, por exemplo, parte do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, assim como 60 outros países. 

Uma estratégia para contrapor ao Banco Mundial e ao FMI, controlados pelo Ocidente. 

Exatamente. A China propôs às estruturas clássicas, dominadas pelos EUA e Europa, a sua entrada nesses fóruns internacionais, e não o permitiram. Foi obrigada a construir os seus. Os países que não a deixaram entrar aderiram a este banco de infraestruturas e a um outro banco de desenvolvimento. Esta estratégia de Uma Faixa, Uma Rota é realmente uma iniciativa extremamente interessante: é a tentativa de estabelecer relações pacíficas através do comércio, fazendo com que cada país que detenha uma linha férrea com investimento seu e chinês tenha retribuição económica elevada. Mesmo que esse país tenha guerrilhas e instabilidade política, terá de encontrar uma maneira de repartir as mais-valias que tem através desse comércio. Isso é um contributo para a estabilidade e poderá criar uma relação pacífica entre os países se forem responsáveis. Por outro lado, através do comércio vêm as ideias, a cultura, o know-how, a religião e a filosofia de cada um. Temos muito a ganhar com as ideias que vêm do Oriente. Ao recebermos, também enviamos. A China já é hoje o maior consumidor de produtos de luxo. A China retirou 700 milhões de pessoas do limiar da pobreza. Nunca nenhum país conseguiu retirar uma tão elevada parcela da sua população da pobreza. 

A China já investiu nove mil milhões de euros em setores como energia, banca e seguros. Há uma certa permeabilidade da economia portuguesa e, por inerência, da europeia aos interesses da China.

A UE privilegiar o Santander, o maior banco da península Ibérica, e querer que a Caixa Geral de Depósitos desapareça para que fique apenas o Santander, ao mesmo tempo que fortalece alguns grupos económicos que nem são portugueses, isso é motivo de tanta preocupação como essa permeabilidade aos interesses chineses. Antes de tudo, Portugal tem de se defender a si. Ser autónomo num mundo global é precisamente saber jogar com alianças que lhe permitam afirmar–se. Como podemos afirmar-nos na Europa? Temos muito mais capacidade para defender os nossos interesses na Europa se tivermos a capacidade de dizer que representamos o comércio com o Oriente. A nossa língua é a mais falada no hemisfério sul e a quinta ou quarta do mundo, além de a nossa relação com a lusofonia ser muito importante para a China. A lusofonia teve em 2017 um crescimento do comércio de 23% com Macau. Portugal pode ser uma interface que não seja apenas, como foi na época áurea dos Descobrimentos, de transporte, onde apenas ficámos com taxas. Temos muito a ganhar se nos fortalecermos neste comércio. Em vez de ficarmos preocupados com os riscos, que há…

Quais são?

O país entrar em relações económicas onde só passam as taxas alfandegárias e não se investir na ciência, educação e tecido produtivo. Temos de fabricar em Portugal para que a mais-valia fique no país: temos de transformar os produtos em vez de os vendermos. Com a cortiça, devemos não só vender as rolhas, mas também os produtos com maior valor incorporado, por exemplo. Acredito que o governo está precisamente preocupado com isso. 

O vice-presidente norte-americano, Mike Pence, alertou para que Pequim investe nos países, cria empréstimos e usa-os para pressão política. Vê esse risco em Portugal?

Os países só conseguem fugir dessas dependências se tiverem uma estrutura diversificada de alianças. Ficámos na dependência do FMI quando não pudemos investir e a Europa e os EUA deixaram de investir – quem o fez foram as companhias chinesas. Esse investimento deu fiabilidade às empresas portuguesas, que passaram a apresentar-se na Europa e no estrangeiro como responsáveis e com capacidade para responderem aos seus compromissos. Quando mais ninguém investiu, as companhias chinesas fizeram-no. Agora, a solução não é colocar todos os ovos no mesmo cesto, mas diversificar. A nossa maior dívida é com o FMI e UE, e vamos agora pagar ao FMI porque fizemos mais empréstimos para pagar aquela dívida que era mais cara. A nossa dívida é a maior de sempre, é quase impagável por estarmos na dependência desta estrutura europeia que não vê o investimento público como positivo. A China fez precisamente o contrário desde a crise de 2008 e o neoliberalismo europeu e interacional obrigou os pequenos países, que precisavam de apoios, a investir nos bancos, o que lhes retirou capacidade. Portugal não tem hoje em dia capacidade para salvar mais uma vez o sistema financeiro se ele for abaixo. Investiu tudo nos bancos – que acabaram por não ser públicos e voltaram para as mãos dos privados -, enquanto a China, ao perceber a mudança estrutural no comércio, retirou 700 milhões de pessoas do limiar de pobreza, criou salários mínimos no campo e na cidade e uma massa de consumo enorme. Em 2008 dependia das exportações, que perfaziam 35%, e hoje depende apenas em 18%. Portugal continua nessa dependência, sem capacidade de sair dela rapidamente. 

Vê com bons olhos um empréstimo chinês para pagar a dívida que diz ser “impagável” neste sistema?

Neste sistema é impagável, mas considero que é uma das possibilidades para recebermos investimento. O renminbi é uma das moedas de troca já aceites internacionalmente – ainda que a finança ocidental não a aceite como moeda de reserva bancária – e uma das mais fortes, em conjunto com o dólar. O que permite ao dólar ser estável é a força militar dos EUA no mundo. Quando Iraque e Líbia disseram que queriam passar para o padrão-euro, foram invadidos.

Voltando à dívida…

Acho positivo que a China seja um dos investidores na dívida pública portuguesa. Não é ficar na dependência de qualquer um deles, é dizer: “Caro amigo, o mundo não é dos EUA, da China, o mundo é de países como os EUA, China, Europa, Rússia.” São blocos fundamentais para o desenvolvimento pacífico da humanidade – e não podemos esquecer-nos da Índia. O que me deixa bastante preocupado é a resolução de conflitos pela venda de armas e pelas guerras económicas que Trump está a fazer – essa é a ameaça mais pesada sobre o mundo hoje em dia. O mundo precisa de paz – se houver guerra, alguns irão lucrar imenso, mas a população morre e outra fica na miséria -, de negociação diplomática entre países, e que seja multipolar. 

Falou da economia mundial neoliberal ocidental mas, em 1979, Deng Xiaoping aderiu ao princípio “um país, dois sistemas” e aceitou o cânone neoliberal. Em que difere a globalização defendida pela China da neoliberal? 

Não difere… O instrumento que coloca no seu relacionamento tem três princípios-base: obedecer à Carta das Nações Unidas, ou seja, não interferência na soberania dos outros Estados; resolução pacífica dos conflitos; e que seja benéfico para os participantes. Há retribuição do investimento feito e reconhecimento da parceria e, ao fazê-lo de forma pacífica, é uma diferença em relação ao mundo neoliberal do Ocidente. Ambos os países são capitalistas. A China tem capitalismo de Estado, um socialismo à maneira chinesa, mas dá confiança ao mundo ao não se afirmar violenta e de forma impositiva. Convida a participar e gere uma série de alianças diplomáticas. Estabeleceu um Fórum África, estabeleceu os BRIC para os países emergentes.

Vê a emergência da China no sistema internacional como pacífica?

Sem dúvida. A China nunca ocupou nenhum território fora do seu espaço.

Mas tem alguns diferendos territoriais, como o das ilhas Diaoyu/Senkaku. 

Estão no seu espaço, sempre as frequentou e navegou – estão no mar da China. Estamos a falar do mar da China, é assim que se chama. Não as ocupou quando não tinha necessidade disso. Não há nenhum facto histórico que comprove que a China é uma ameaça, nem no passado. 

A China tem vindo a investir cada vez mais no orçamento para a defesa. 

Felizmente. É a única forma de mostrar aos Estados Unidos que há outros países que contam no mundo e que têm forças para se defender. Esta conflitualidade dos Estados Unidos é uma coisa que não temos da parte chinesa, mas sim investimento na defesa e participação nas missões de paz das Nações Unidas. Temos o porto de Djibuti, onde as marinhas norte-americana, chinesa e de outros países estão ancoradas sem problemas nenhuns para defenderem o comércio internacional. É importante que se mostre à antiga potência unipolar que há outros países que contam e têm de ser respeitados.