Se tiverem tido conhecimento dos espancamentos, os superiores hierárquicos dos formadores do módulo de “bastão extensível” do 40.º curso de formação da GNR, que ocorreu entre 1 de outubro e 9 de novembro – em particular, o comandante do centro de formação da GNR de Portalegre e o comandante do batalhão escolar, responsável por aquilo que se ensina no centro de formação – tinham de ter denunciado a situação ao Ministério Público (MP). É isso que determina o Código Penal.
“O superior hierárquico que, tendo conhecimento da prática, por subordinado, de facto descrito nos artigos 243.º ou 244.º, não fizer a denúncia no prazo máximo de 3 dias após o conhecimento, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos”, faz saber o artigo 245, referindo-se aos artigos 243 e 244, que dão conta de que “quem, tendo por função a prevenção, perseguição, investigação ou conhecimento de infrações criminais, contraordenacionais ou disciplinares” empregar “meios ou métodos de tortura particularmente graves, designadamente espancamentos, eletrochoques, simulacros de execução ou substâncias alucinatórias” é “punido com pena de prisão de 3 a 12 anos”.
O alerta é dado ao i pela Associação dos Profissionais da Guarda (APG/GNR). O coordenador da Delegação Sul da associação sindical, António Barreira, mostrou-se especialmente preocupado com essa possibilidade, questionando o motivo pelo qual, “as hierarquias superiores, que se estiveram presentes, não denunciaram as agressões ao MP”.
O i contactou a GNR para saber se os comandantes estiveram presentes em algum momento da formação, enquanto as agressões ocorreram, mas até ao fecho desta edição não houve resposta. Ao i, um jurista que não quis ser identificado confirmou que à luz do Código Penal os superiores eram obrigados a denunciar a situação. Assinala, contudo que, muitas vezes, nestas áreas, as chefias não estão no campo, ao lado dos formadores, pelo que admite que os comandantes podem não ter tido conhecimento das agressões continuadas.
Por sua vez, o responsável da associação sindicalista – que assinala que, depois da notícia do “Jornal de Notícias”, a entidade tomou diligências para verificar a gravidade das agressões, tendo-as confirmado – defende que “quando algo corre mal, não se pode só apontar o dedo aos instrutores, temos de ver quem está a supervisionar”.
Agressão e não formação Para António Barroso, a gravidade dos atos cometidos pelos formadores no curso é incontornável. “A pessoa que está a receber formação levar pontapés e murros ao ponto de ter de ser intervencionada no nariz, não é normal”, afirma, explicando que a falta de experiência dos formadores neste tipo de módulo é um elemento a ter em conta.
“Quem administra estes cursos devem ser militares com mais tempo de serviço e mais conhecedores do terreno, porque um alferes que acabou de sair da academia militar não tem ainda a experiência que é precisa. Uma coisa é termos a teoria, outra coisa é termos a teoria, a prática e o tempo que nos ensina a lidar com a formação – a experiência. Os escolhidos para dar formação devem saber dá-la”, considera.
O fundamento do módulo em questão, explica o militar ao i, é que os formandos percebam em que partes do corpo podem desferir pancadas com o bastão extensível. “A pressão é muita: o formador (red man) que está a formar o formando é quem o avalia, e ele tem de estar atento e não bater nos pontos ditos ‘vermelhos’ (sensíveis, em linguagem comum), como o pescoço, a cabeça ou as partes laterais do crânio. Quando o formando se engana e bate em zonas proibidas, mais agredido é pelo red man”. A situação, na sua visão, é de clara desvantagem, uma vez que “o formando tem consciência de que o agressor, que é o formador, é a pessoa que o avalia e que pode chumbá-lo. Além disso, o red man está protegido, equipado, e os alistados estão com a farda normal de instrução, tendo apenas um bastão PVC enrolado em esponja”, afirma. “Os alistados têm de aprender a usar o bastão extensível, mas isso é diferente de se partir para uma coisa sem nexo, que é a agressão”.
Instituições “estão a funcionar” O responsável sindical mostra-se satisfeito por “as instituições estarem a funcionar”. Ontem, o Ministério Público confirmou ao i que “determinou a instauração de inquérito” relacionado com o caso dos espancamentos no curso de formação da GNR, em Portalegre. No domingo, a notícia do “Jornal de Notícias” deu origem à abertura de um inquérito pela Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI), ordenado pelo Ministério da Administração Interna. Eduardo Cabrita quer o “apuramento dos factos e a determinação de responsabilidade”, explicou em comunicado. Para o ministério, as agressões “não são toleráveis numa força de segurança num Estado de Direito democrático”. O ministério fez ainda saber que “pediu esclarecimentos ao Comando Geral da GNR sobre os factos descritos na notícia”.
Questionada pelo i, a GNR revelou no domingo que “determinou, em 13 de novembro, a abertura de um processo para averiguar as circunstâncias”, dias depois de as agressões terem ocorrido. Por sua vez, a APG/GNR nega que isso tenha acontecido. “O que chegou à associação foi que, em 13 de novembro, a GNR abriu individualmente, a cada militar agredido, um processo de acidente em serviço – um procedimento normal e corriqueiro que se faz em casos de acidente em serviço, quando os militares se aleijam, é obrigatório”, recorda ao i.
De resto, o “Jornal de Notícias” avançou ontem que a Procuradoria-Geral da República (PGR) tinha recebido um vídeo de telemóvel que, segundo o mesmo jornal, terá registado um dos combates mais violentos do módulo de “bastão extensível” do 40.º curso de formação da GNR em Portalegre, uma informação que a PGR não confirmou ao i.
Lesões graves Segundo o mesmo jornal, um formador denominado “red man” – devido à cor vermelha da sua armadura, constituída por luvas de boxe, caneleiras e capacete –, espancou dez formandos que lutavam apenas com um bastão em plástico revestido com esponja ou borracha, sem qualquer proteção, tendo-lhes provocado fraturas, perda de sentidos e lesões oculares graves – sendo a perda de visão uma possibilidade. Alguns dos formandos tiveram mesmo de receber internamento hospitalar, tendo sido submetidos a operações. Para alguns, a conclusão do curso, dada a gravidade das lesões, está em risco.
Ao “Jornal de Notícias”, uma fonte que não quis ser identificada contou que “oito ou nove alistados foram internados no Hospital de São José, de urgência, com narizes partidos, fraturas nos dedos das mãos e, no caso de um deles, lesões oculares”: “Todos tiveram hematomas como olhos negros, nariz partido, a boca a sangrar ou ferimentos nas orelhas, mas não foram à enfermaria com medo de represálias. No caso dos guardas provisórios do sexo feminino, houve casos de socos na cabeça, mulheres empurradas e com os peitos pisados. Muitas delas tinham medo de ir à enfermaria com receio de chumbar no curso. É a primeira vez que situações desta natureza estão a ocorrer”.