Pais, filhos, o mito de que dizer “não” traumatiza, o tempo e a falta dele – e como muitas vezes isso não passa de uma desculpa. O psicólogo Eduardo Sá tem um novo livro com as reclamações das crianças, que acredita que têm um sentido de justiça mais apurado do que os mais velhos possam pensar. Pretexto para uma conversa sobre o que as inquieta e o que trama os pais. E sobre como conciliar vida familiar e trabalho – na semana em que o governo lançou propostas nesta área – exige um esforço mais sério do Estado mas também o compromisso de cada um.
Acaba de publicar o “Livro de Reclamações das Crianças”. Por que sentiu necessidade de lhes dar voz desta maneira?
Temos uma ideia um bocadinho rudimentar das crianças. Quando trabalhamos com elas todos os dias, percebemos que são de uma sensibilidade e de uma inteligência fora do vulgar. Se as aquecemos um bocadinho de forma a que se sintam seguras para desabafar – e elas nunca o fazem de outro modo – chegamos a ficar quase arrepiados com o nível de pormenor que elas têm em relação ao comportamento dos adultos.
Pode dar um exemplo?
Perceberem que alguns adultos não são tão crescidos assim. A maneira como elas, quando sufragam o exercício de justiça dos pais, são sérias.
Não pendem para o lado delas?
Não. Têm uma honestidade que nos deveria interpelar da cabeça aos pés, isto mesmo quando têm o cuidado de ser delicadas connosco. Uma coisa são os nossos filhos quando são demagógicos e nos querem meter no bolso. Outra coisa é quando temos uma conversa séria e são capazes de assumir o que se passa com elas e pôr o dedo na ferida em relação aos nossos comportamentos. E dizer, até, que só não o fazem mais vezes porque têm noção de que, com isso, melindram e magoam os pais.
Têm essas noções a partir de que idade?
Temos reclamações de crianças com cinco anos que acho que qualquer pai ou mãe não esperaria que elas tivessem. Por exemplo porque é que a minha mãe, quando ralha comigo, me fecha no quarto e fica do lado de fora. Aquela ideia de que nós, os pais, quando entramos numa birra, também fazemos birra, amuamos – e até nós precisávamos, às vezes, de ser repreendidos em relação à forma como nos zangamos. As crianças têm noção de que não somos tão humildes como devíamos ser. A ideia do livro foi no fundo pegarmos em algumas reclamações e responder.
Como num livro de reclamações a sério?
Sim. Responder às reclamações como às vezes não respondem às nossas, falando-lhes através dos pais. Em Portugal, em virtude de uma história social e política que não se pode esconder, por vezes confundimos rezingar e reclamar. Reclamar é uma coisa séria, não é uma coisa agressiva. A expectativa é que a pessoa com quem reclamamos possa ser capaz de nos escutar. Dizer não a alguém é dizer aquilo que sentimos, com a convicção de que a outra pessoa é capaz de nos conhecer e de gostar de nós ao ponto de aceitar os nossos nãos. É dizer sim à relação onde estamos a dizer que não. Um não são tantos sins que, às vezes, é quase escandaloso o modo como algumas pessoas aprendem a dizer não. Insultamo-nos quando dizemos ‘nim’, que é aquilo que os adultos passam a vida a fazer uns aos outros.
Fotografia: Mafalda Gomes
Mas, no caso das crianças, aceitar todos os nãos delas não pode fazer com que os pais percam um pouco o controlo?
Não é suposto acontecer isso. As crianças têm a ideia de que a mãe e o pai são a lei – reconhecem esse exercício de autoridade a quem tem sabedoria, bondade e sentido de justiça em relação a elas. Por vezes penso que os pais só podem ter crescido em escolas e famílias onde prevalecia o autoritarismo porque confundem muito a autoridade com o autoritarismo. Têm a mania que dizer que não a uma criança a traumatiza. É mentira. Dizer que não a uma criança ajuda-a a crescer, é um fator de crescimento. Os pais pensam o contrário, que os pais fixes são aqueles que dizem sim a quase tudo e que dialogam, explicam e justificam… Depois ficam ali num emaranhado que eles próprios criam e, a certa altura, em vez de haver regras e bom senso, parece haver uma espécie de democracia do proletariado lá em casa em que os mais pequenos mandam nos pais como se isso os protegesse. E não protege.
Portanto terem direito a livro de reclamações não as coloque nesse lugar.
Não, é simplesmente fazer na família aquilo, à escala de um Estado, é razoável: os cidadãos perceberem que respeitamos tanto mais as instituições quando temos, com toda a lealdade, a capacidade de as pôr em dúvida quando erram e não correspondem àquilo que esperamos. Reclamar é um exercício de esperança.
Para algumas pessoas será mais um exercício de raiva.
Sim, mas não podemos pensar que, lá porque há pessoas que parece que se vingam no livro de reclamações, reclamar é sempre uma forma de agredirmos terceiros. Não é e não é isso que se passa entre as pessoas que se amam. Acho, por exemplo, que os casais saudáveis deviam ter uma discussão pelo menos uma vez por semana.
Um tabu ainda.
Casais que não discutem são casais doentes. Duas pessoas são dois mundos tão diferentes que reclamar é dizer ao outro “calma, que há aqui um caderno de encargos que temos entre nós enquanto casal e não desistimos de o cumprir”. Quando ouvimos amigos nossos dizer “porque é que eu já não digo nada? Porque não vale a pena…” – estas pessoas, por mais que formalmente estejam casadas, já estão mais que divorciadas. As crianças, por outro lado, não se cansam de reclamar.
Indo ao exemplo que deu de fechar no quarto: O pai fecha no quarto, a mãe acha que ainda dava para conversar mais um bocado, mas depois percebe que fechar no quarto simplesmente é mais eficaz.
Eu tenho medo das mães. Têm um coração imenso, ameaçam, falam. As mães são as campeãs da ameaça, esganiçam-se. É um património da humanidade esse esganiçar das mães. E depois quando se zangam são uma delícia. Zangam-se num tom algodão doce que não é bem uma zanga. Quando nos zangamos pressupõe-se que, naquele momento, os nossos filhos têm de ter um bocadinho de medo de nós. Não é que eles deixem de saber o quão bondosos somos, mas é porque aquele medo lhes define um perímetro em relação ao que podem fazer.
O segredo está em ser convincente?
Sim. Claro que à escala do coração de mãe ou de pai, justificar, negociar e explicar é bondade. À escala da compreensão de uma criança é insegurança. As coisas têm de ser mais preto e branco.
Diz na capa do seu livro que em cada zanga mora um abraço.
Se formos capazes de a aproveitar.
Mas quer dizer que é uma forma de afeto?
Tenho o maior apreço pelo Sr. Presidente da República mas fico com algumas dúvidas quando, a pretexto da sua intervenção, se vai colando aquela ideia de ser o “presidente dos afetos”. Tenho medo que, quando se fala de afetos, só se fale de emoções boas e afetos simpáticos. Somos animais tão sofisticados que distinguimos bem e mal e distinguimos afetos bons e maus. E os afetos maus também nos ligam uns aos outros se tiverem um sentido para nós. Evidentemente que não conheço nenhum pai ou mãe que diga “agora vou divertir-me um bocadinho magoando o meu filho”. Mas quando dizem um não tendo a noção de que, com isso, podem magoar um bocadinho a criança, fazem-no com a convicção de que conseguem um bem maior, que é definir ali um conjunto de coordenadas que vão ser boas para eles e os vão proteger vida fora. Mesmo que haja determinados nãos que magoem os nossos filhos, isso não é dramático. Magoá-los um bocadinho não significa maltratá-los. E é nesse sentido que a zanga é também uma forma de afeto, é uma forma de amor.
Mas ouvimos por vezes esse desabafo: chego a casa e passo a vida a repreendê-los. É preciso retirar essa culpabilidade aos pais?
Sim, mas essa culpabilidade é também um fator de crescimento nos pais. Aquele momento seguinte a zangarmo-nos, quando nos pomos em causa e nos perguntamos se fiz bem ou mal, é o que nos leva a aprender a ser pais. Porque é que os avós fazem menos asneiras? Porque vão um volume de asneiras tão à frente dos pais que aprenderam em consequência disso. Temos uma ideia de que todos nascemos preparados para ser pais mas o facto é que aprendemos à medida que o fazemos. Costumo dizer que os primeiros filhos são crianças um bocadinho em perigo.
Diz que só a partir do segundo é que se começa a ser pai.
Sim, porque no primeiro filho mistura-se tudo: os pais que tivemos, os pais que desejávamos ter tido, os pais que nos imaginamos a ser capazes de ser, os filhos que nos imaginamos a ser capazes de construir. Um primeiro filho é de tal forma um entreposto de histórias que não tem muito espaço para ele ser ele próprio. Num segundo filho já estamos tão livres disto que sintonizamos mais facilmente com ele, enquanto o primeiro filho tem coisas que às vezes não são tão ele mas pequenos espelhos de nós.
O que é que lidera as reclamações das crianças?
Em síntese, a maneira como os pais não são tão justos ou tão atentos como deviam. Em segundo lugar vêm os protestos em relação à escola.
E queixam-se da falta de tempo dos pais ou são os pais que tendem a ver isso como o grande problema?
Somos todos ótimos a enganarmo-nos com a verdade. Quando olhamos para a história, nunca houve tantos pais com tanto tempo para os filhos, o que é exatamente o contrário do que passamos a vida a dizer. Temos micro-ondas, máquina de lavar e Segurança Social, que mal ou bem vai funcionando.
Mas ao mesmo tempo há mais informação, mais exigências ao papel de pai. Ideias como fazer a “rotação dos brinquedos”…
Os pais são magníficos quando são pais de bebés. Então as mães passam as barreiras de tudo o que se possa imaginar: os bebés nunca choram da mesma maneira e as mães não precisam de mais nada naquele momento para saber o que é. Nós agora no Babylab [Laboratório de Psicologia do Bebé da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra] vamos fazer um estudo sobre 15 tipos de choro e a mãe em tempo real adivinha. Isto é o sexto sentido, uma capacidade notável que todos temos.
Fotografia: Mafalda Gomes
Mais as mulheres do que os homens?
Costumamos dizer que as mulheres vêm equipadas com sexto sentido e que é uma espécie de equipamento de opção dos homens, não é um equipamento de série. Não é verdade: a intuição é o topo de gama do sistema nervoso e somos notáveis nisso. O que acontece é que depois os pais passam a vida a empanturrar-se com informação e começam a desqualificar a intuição deles, que é muito mais sábia do que grande parte da informação que circula por aí.
Tantas páginas e blogues dedicados à parentalidade roubaram-vos algum protagonismo, não?
Pelo contrário, deram mais importância a quem fala de forma técnica e fundamentada. Por mais que respeite essas opiniões, as vezes são pouco sensatas, pouco experimentadas, demasiado empíricas.
Das ideias que costuma ler, quais é que lhe fazem mais confusão?
Desde logo essa ideia de que o não traumatiza uma criança, que é um atentado ao bom senso. Um traumatismo de um ponto de vista psíquico é uma nódoa difícil, muitas vezes são aquelas experiências de quase morte que ficam coladas a nós e se manifestam nas circunstâncias mais improváveis. É muito mais traumático não dizer que não aos filhos do que dizer que não. Há muitos slogans deste género que se repetem e que acabam por estragar os pais.
Como vê ideias que têm surgido até no debate em torno do consentimento como pedir autorização ao filho para mudar a fralda?
Devia ser proibido. Quando os pais precisam de autorização para fazer de pais significa que a função fundamental que desempenham na vida dos filhos está contaminada. É tudo o que os filhos não esperam dos pais.
O governo lançou esta semana um conjunto de medidas para conciliar melhor a vida pessoal, familiar e profissional. É o caminho certo?
Há muitas coisas sérias que o governo já devia ter feito, desde logo assumir que uma consulta de obstetrícia não é uma questão exclusiva da mãe e que devia ser motivo para que o pai pudesse ter direito a acompanhar a mãe e o bebé sempre que há uma consulta sem ter de meter um dia. Se o governo quer ter medidas sérias em relação aos pais, então meta os jardins de infância tendencialmente gratuitos. Como é que se dá importância aos pais e aos filhos e os jardins de infância custam mais do que qualquer universidade privada? Ou porque é que as deduções no IRS são como são? Quem faz as deduções do IRS pensa que todos devíamos educar os nossos filhos na loja dos 300. A certa altura acho mesmo que quem planeia as políticas da família anda a gozar connosco.
Havendo mais apoios, continuará a ser uma utopia conciliar melhor a vida pessoal e profissional?
Não é uma utopia. Se remontarmos ao pós-guerra e virmos a grande mudança que houve nos países nórdicos, percebemos que as utopias são perfeitamente realizáveis. Agora, tem de ser uma opção de fundo e uma opção seriíssima, de todos. Quando temos um filho pequenino que vai pela primeira vez para o jardim de infância eles fazem viroses quase semana sim e semana não. A fatura hoje cai invariavelmente sobre as mães, que têm de faltar e são oneradas por isso. Querem medidas sérias? Continuamos com a ideia de que uma política da família é qualquer coisa que cheira a direita, quando era altura de assumirmos que é um imperativo de regime, cada vez mais urgente. Custa dinheiro? Claro. Mas custa menos do que os estádios de futebol na altura do Euro. O que custa mais hoje, a médio prazo terá um retorno tão significativo que devia ser encarado de uma forma mais séria.
Não há também uma mudança a fazer sociedade?
Sim, passa por todos. Nos países escandinavos, quando é suposto sair às quatro, e sai às quatro e um quarto, no dia a seguir tem o seu chefe a perguntar o que aconteceu. Das duas uma, ou não está a desempenhar a sua tarefa como deve ou os compromissos que lhe deram são pouco razoáveis para o tempo que tem. Em Portugal parte-se do pressuposto de que o que está bem é nós não termos horários de entrada e nós ainda agradecemos. E depois, quando saímos a horas porque é suposto irmos buscar os nossos filhos, ficamos mal vistos. Vestirmos a camisola é uma forma dourada de sermos explorados. E mais, entre chegarmos e começarmos a trabalhar, perdermos meia hora porque vamos entretanto vamos tomar café. Isto é muito uma questão de gestão e de escolhas sérias.
Porque não as fazemos?
Costumo dizer que devia ser proibido os jardins de infância estarem abertos depois das cinco. A determinada altura há muitos pais…
Que usam isso como desculpa?
Claro que sim. E todos temos de fazer escolhas. Quando não há alternativa vamos buscá-los. Há muitos miúdos a ficar nas escolas. Devia ser caso de polícia, as comissões de proteção de menores deviam ter cada vez mais isto em atenção: há muitos pais que se esquecem dos filhos. Não é o pai ou a mãe enganarem-se em quem tinha de ir buscar os filhos, isso acontece a todos. São crianças que um dia atrás do outro são sempre as últimas a sair do jardim de infância e, muitas vezes, ainda se tem de telefonar para os pais para as irem buscar. Há jardins de infância que funcionam 24 horas por dia em Lisboa. Isto é um jardim de infância ou é um centro de acolhimento travestido de jardim de infância? A determinada altura, temos de ter uma ideia do que queremos para as crianças.
Cabe aos pais esse exercício?
Também. Passamos a vida a encher a boca a falar das crianças e quando chega a hora da verdade, que é o que fazemos com a infância dos nossos filhos, fazemos uma espécie de banco de horas de tempo de infância que eles não usam e nunca vão usar. Era altura de os pais perceberem que têm de fazer escolhas, escolhas que ainda os penalizam muito – e aí entra o Estado. Há estudos que dizem que, tomando em consideração uma família da classe média, tendo em conta os gastos e as horas que não trabalhamos para sermos pais, em que andamos de um lado para o outro para os transportarmos, pode custar até 75 euros por dia.
Parece-lhe que os decisores políticos estão afastados da vida real?
Têm de estar. Mesmo agora, é impensável que quando se diz que a educação é gratuita os manuais escolares custem o que custam e não é solução esta ideia de os livros serem reutilizáveis, porque isto é continuarem a tratar-nos como se não vivessem neste mundo. Vamos começar a apagar todos os livros? Como se as crianças não tivessem direito a ter livros novos, para sublinhar da forma como entendem, dobrar o cantinho da página. Está tudo mal. Ou, como aconteceu recentemente, perceber-se que as crianças desfavorecidas que têm direito a uma bolsa de mérito este ano só vão receber metade. É neste país que quer dar importância à família que isto acontece.
No trabalho que fez para o seu livro, alguma das crianças se queixou de ser forçada a dar beijinhos? Foi uma das discussões polémicas dos últimos meses envolvendo crianças.
Não. Essa polémica partiu de uma construção no mínimo bizarra e que não é do interesse das crianças.
Mas não é atendível o argumento de que esta obrigação pode ser uma pequena pedagogia que cresce e que pode explicar por que temos números tão elevados de violência?
Isso é demagogia. Partir do pressuposto de que, por ser nossa convicção que os nossos filhos devem sinalizar com um beijo as pessoas que respeitamos, isso levará a violência, é do mais esquizofrénico que existe. E a dimensão que teve a polémica mostra como hoje as pessoas estão tão cheias de redes sociais que já nem pensam, reagem.
Mas encontra explicações na educação que se dá em Portugal para os níveis elevados de violência doméstica, de violência no namoro?
As crianças não brincam. Passo a vida a ouvir mães que se organizam em piquete para irem para os recreios das crianças para elas terem brincadeiras saudáveis. Quando as crianças estão fechadas 90 minutos e têm recreios de cinco, a primeira coisa que fazem é querer correr. Precisam de espaço, de andar à bulha e não permitimos nada disso, que usem o corpo, que sejam vivas. Quando aprendemos a dimensão da agressividade não somos violentos. Passamos a vida a querer educar as crianças como se fossem de porcelana. Vivem debaixo de um stress permanente porque são mais inteligentes se tiverem 5 a tudo, mesmo que estejam a repetir sem pensar. Entramos num exercício demagógico a dizer que respeitamos as crianças e, com isso, definimos cada vezes menos regras com o tal medo de dizer “não”, o que também as ajudaria a aprender a reagir à dor. Montamos este embrulho todo, elas não aprendem a viver umas com as outras e quando são adultos violentos pensamos que o problema começa nos beijinhos.
Por outro lado, deve ver casos de violência preocupantes na juventude, casos de bullying.
Às vezes fico mais assustado com o lado dos pais. Há miúdos que estiveram debaixo de uma atmosfera de bullying não é uma semana, são meses a fios, anos a fio. Por mais que eu perceba a perplexidade dos pais, não consigo perceber porque é que não fazem o que têm de fazer.
Não se queixam?
Queixam, mas há um lado batoteiro das escolas. Quando os pais chegam e dizem: “Olhe, há uma situação de bullying de que o meu filho está a ser vítima e não podemos permitir isto”, a maneira como as escolas invariavelmente chutam para canto e arranjam processos é inacreditável.
Escolas públicas e privadas?
Todas. Então se as crianças que protagonizam o bullying têm lá um apelido com pedigree qualquer, é garantido que as medidas são nenhumas. Ao criarmos tudo isto e não sermos a lei para os nossos filhos, estamos a fazer tudo para que as pessoas sejam violentas.
Tendo em conta os casos que chegam ao consultório, o que lhe parece ser mais problemático na relação entre pais e filhos nos dias de hoje?
Os problemas de autoridade dos pais em relação aos filhos, a forma quase assustada com que agem. Fico sem jeito quando uma mãe me pergunta: “Como é que eu me zango com o meu filho? O que é que eu posso fazer”?
Perguntam-lhe se vale uma palmada?
Claro que vale. Acho aliás um discurso de uma hipocrisia sem fim quando confundimos uma palmada com mau trato físico. Eles sabem que, ao desafiar-nos, estão a magoar-nos. A certa altura têm de perceber quando é que há ali uma parede que não dá para passar. Quando damos uma palmada simbólica no rabo não é para os magoar. A legenda é: “Eu recorro a tudo o que estiver ao meu alcance na convicção de que se eu te der uma dor pequenina, tu vais perceber que não podes dar uma dor ainda maior ao pai ou à mãe.”
Uma palmada no rabo funcionará quando eles são pequeninos. Mas e uma estalada?
Obviamente isso já não entra no domínio do bom senso. Uma palmada é simbólica. As estaladas não são simbólicas. E mesmo a palmada aceitamos de pessoas a quem reconhecemos justiça, os nossos pais, avós e chega.
Foi pai de novo depois dos 50.
Tenho dois filhos pequenos, a minha filha mais nova tem onze meses.
É uma sensação diferente?
É sempre diferente. Para mim ser pai é a coisa mais impactante que existe.
Mesmo ao sexto filho?
É cada vez mais impactante. Somos mais experientes e temos uma noção tão mais clara de tudo o que é mágico e frágil.
Mas tem pachorra para as fraldas?
Sim, porque à boleia disso vem tudo o resto. A maneira como eles nos olham, a maneira como aprendem a gatinhar e andar, quando eles dizem “não gosto do pai” para percebermos as entrelinhas.
Diz-se que os miúdos estão mais espertos. Tendo filhos adultos e agora dois pequenos, sente essa diferença?
Não. Ora aí está mais um slogan desses falsos. As crianças são todas invulgarmente inteligentes a não ser que os pais as estraguem. A diferença hoje é que estragamos menos os filhos.
Porquê?
Damos-lhe uma atenção mais educada. Às vezes estimulamo-las de mais na ânsia de que cresçam. E os pais, apesar de tudo e de ser difícil, têm condições que antigamente não tinham. Hoje somos os melhores pais que a humanidade já conheceu. E por isso, havendo problemas, as crianças hoje são menos deprimidas e agitadas do que eram.
Nunca estiveram tão medicadas.
Sim, mas isso porque em Portugal se convencionou que as crianças devem estar o tempo que estão nas escolas e ninguém se preocupou em medir as consequências. Sempre tudo com cada vez mais exigência: se um filho tem um 3 é débil, não têm de brincar duas horas por dia mas sim de ir para todas as atividades. Criamos as condições para estarem agitados e quando eles realmente ficam agitados, pensamos que deve ser uma epidemia atípica. Era importante que a Direção Geral da Saúde viesse explicar porque é que este milhão e pouco de crianças que existem entre os quatro anos e a adolescência consome vários milhões de doses de anfetaminas.
Chegam-lhe casos de miúdos apáticos à conta da medicação?
Sim. Vejo miúdos medicados desde bebés. Não digo com metanfetaminas, mas é preciso ter noção de que estamos a medicalizar as crianças de uma forma preocupante. Quando as crianças têm dificuldades no sono cada vez mais dão-se gotinhas para dormir, depois são gotinhas para o apetite. É engraçado porque é um mundo cada vez mais amigo do biológico quando se trata da alimentação mas, em relação aos nossos filhos é um mundo cada vez mais amigo do sintético.
A escrita foi sempre um interesse paralelo à clínica. Pensa algum dia deixar o consultório para se dedicar só a isso?
Gostava de ter feito isso quando tinha 16 anos mas a minha irmã mais velha desencorajou-me e agradeço-lhe por isso. Escrever é uma forma de ir arrumando a informação e o que aprendo todos os dias. Tenho o privilégio de trabalhar com o lado mais bonito das pessoas.
Pensaria que seria o lado mais sombrio.
Pelo contrário, as pessoas despem-se por dentro e partilham o que escondem dos outros. Contam as histórias que não contam a mais ninguém. É um privilégio, independentemente das idades.
É mais fácil trabalhar com jovens?
É diferente, mas fico absolutamente comovido quando chega alguém na casa dos 90 anos a pedir ajuda para se reconciliar com a vida ou alguém com 70 anos descobrir o amor da sua vida e lutar por ele. Ainda há muito a ideia de que as pessoas quando ficam mais velhas deixam de ser pessoas. Noutro dia uma avó contava que a neta pequenina virou-se para ela e disse: ”Não, a avó não é mais velha, é mais antiga”. Esta delicadeza dos miúdos lembra-nos que as pessoas podem ser muito bonitas por dentro. Às vezes desperdiçam-se muito, namoram pouco, falam pouco, sempre com esta ideia de que o telefone resolve tudo. Precisamos mais de dizer olhos nos olhos gosto de ti, não está a correr bem, admiro-te. Há muitas pessoas cujos pais morrem e que nunca ouviram deles uma coisa destas: “Tenho uma admiração por ti por isto ou aquilo”. E vice-versa. Era muito importante percebermos que não podemos fazer como os adolescentes, que dizem com algum embaraço: “Não vale a pena dizer isso aos meus pais porque eles sabem”. É porque elem sabem que precisamos de dizer mais vezes.