A procriação medicamente assistida (PMA) volta hoje ao parlamento depois de estar em suspenso desde abril. A par do Bloco de Esquerda (BE), todas as bancadas parlamentares à exceção do CDS-PP levam à discussão projetos de lei que pretendem responder à questão que travou a lei da procriação medicamente assistida: a confidencialidade dos dadores, levantada pelo Tribunal Constitucional (TC) no acórdão que chumbou também várias normas da lei da gestação de substituição. Além do projeto de lei sobre a procriação medicamente assistida, o BE leva ainda um projeto que incide sobre a gestação de substituição.
Ao i, o deputado bloquista Moisés Ferreira, que integra a comissão parlamentar de Saúde, explica que “os dois projetos pretendem dar uma resposta legal às consequências do acórdão do TC. Apesar de na lei estar previsto o recurso à PMA e à gestação de substituição, a verdade é que tudo está em suspenso”. E isso coloca problemas “sérios”, defende o deputado. “No caso da PMA, por exemplo, existem cerca de oito mil embriões que correm o risco de destruição porque não podem ser utilizados, assim como muitos gâmetas, femininos e masculinos, que não podendo ser utilizados correm esse risco”, alerta. O estado de suspensão afeta em especial as famílias que querem ter filhos recorrendo à PMA. “Algumas mulheres tinham até já iniciado tratamento, mas foi suspenso porque estavam a utilizar material que era doado sob anonimato”, recorda Moisés Ferreira.
Nos projetos de lei que assina, o BE propõe, no documento relativo à PMA, “que nas dádivas de hoje para diante haja então uma alteração de paradigma, prevendo-se a possibilidade de reconhecimento da identidade civil do dador, mas apenas pela pessoa que nasceu da dádiva, que pode a partir dos 16 anos requerer essa informação”. O anonimato dos dadores que fizeram dádivas até ao chumbo do TC está acautelado, e deve ser respeitado, seguindo o que a lei ditava desde 2006.
Quanto à gestação de substituição, num segundo projeto de lei, o BE dá resposta aos problemas levantados pelo TC propondo, em primeiro lugar, que se retire a possibilidade de nulidade dos contratos, mantendo-se “as sanções penais para quem recorre à gestação de substituição fora do âmbito previsto na lei”, descreve o deputado. Em segundo lugar, a proposta do BE determina “com maior pormenor o que deve constar do contrato de gestação de substituição a estabelecer entre beneficiários e gestante”, explica Moisés Ferreira. Por fim, o BE pede que a gestante possa revogar até ao registo da criança. Ora, nos estabelecimentos de saúde onde já seja possível fazer o registo da criança – e a maioria já o permite –, a gestante tem até à alta, cerca de 2 ou 3 dias, para revogar. Nos casos em que a criança nasça fora do hospital ou num hospital onde não seja ainda possível registar o bebé, a gestante pode ter até 20 dias. “Julgamos serem as alterações necessárias para permitir que a gestação de substituição fique disponível para aqueles casos muito concretos especificados na lei”, conclui Moisés Ferreira.
De resto, o BE é o único que dedica um projeto de lei à gestação de substituição. O PSD, por exemplo, explica ao i que não se pronuncia sobre a gestação de substituição, por considerar que “ainda há muito a analisar e estudar”. A deputada Ângela Guerra explica o porquê: “A forma que o BE encontrou de solucionar a questão da liberdade do consentimento da gestante não nos parece de todo adequada. Achamos que o diploma fica pior agora do que antes e há colegas que não concordam sequer com a eventual possibilidade de se ter uma criança com material genético que não é da gestante e depois até à data do registo da criança, a gestante – que não é sequer mãe biológica – possa dizer que afinal a criança é dela”, adianta a deputada ao i.
O projeto de lei do PSD que será discutido hoje propõe uma resposta relativamente “ao regime de acesso à identificação civil dos dadores nos processos de PMA”, bem como “a criação de um regime transitório para resolver algumas questões que o TC introduziu, quanto ao material genético que neste momento está congelado e que foi doado ao abrigo da confidencialidade que existia anteriormente”.
A deputada social-democrata nota que os projetos de todas as bancadas parlamentares relativos à questão da identificação civil dos dadores “vão todos no mesmo sentido e, por isso, será um tópico consensual no parlamento”.
O CDS é o único partido que não avança com uma proposta nesse sentido, levando por sua vez à discussão um projeto de resolução que propõe o aumento de três para cinco o número de tratamentos de PMA comparticipados pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS).
não-anonimato não é impeditivo A diretora do serviço de Medicina de Reprodução do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Teresa Almeida Santos, não acredita que a possibilidade de conhecer a identidade dos dadores possa vir a ser um problema. “Estou convicta de que a grande maioria das pessoas que recorria a gâmetas doados vai continuar a recorrer, independentemente da garantia do anonimato ou não. Não serão todos, mas a maioria sim”.
Para a especialista, que é também presidente da Sociedade Portuguesa da Medicina da Reprodução, a questão coloca-se, sim, aos dadores: “Naturalmente, vai haver menos dadores, pelo menos numa fase inicial, que foi o que aconteceu também nos outros países. Contudo, na minha experiência no CHUC, os dadores que temos em processo de dádiva e aqueles que já doaram e a quem dissemos que neste período transitório poderia não estar assegurado o anonimato, todos optaram por manter as dádivas”, explica ao i Teresa Almeida Santos.
A decisão de recorrer a um dador, quando é tomada pelos futuros pais, já foi muito refletida, “a par de acompanhamento psicológico”, diz a obstetra. Por isso, na sua visão, o facto de “a pessoa poder vir a conhecer a identidade civil do dador não demove os pais dessa ideia, até porque a vontade é muito forte”. Além disso, lembra Teresa Almeida Santos, a pessoa só irá conhecer a identidade civil do dador se os pais revelarem que é fruto de uma doação.
Questionada quanto à possibilidade de arrependimento da gestante até ao registo do bebé (como defende a proposta do BE) poder levar os casais em análise no Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida a desistirem da solução, Teresa Almeida Santos recorda que “a lei que existia implicava que a gestante fosse alguém conhecido do casal – uma mãe, uma irmã, uma amiga. Ora, essas pessoas não se vão arrepender”, acredita.
Para a especialista, é preciso que se esclareça bem famílias e dadores. Quanto aos últimos meses, Teresa Almeida Santos descreve que têm “sido muito difíceis para as pessoas, que normalmente já estão muito ansiosas nestes processos”. “É muito complicado ver que as coisas se arrastam e não há respostas à vista. E para os profissionais também, que têm de se multiplicar em explicações”, lembra.
De resto, a médica garante que nos últimos meses, no CHUC, as mulheres que têm decidido recorrer a PMA não têm sido impedidas. “Até porque a lista de espera de gâmetas no banco público é superior a um ano, por isso vamos pondo as pessoas sempre em lista de espera”. Não teve, também, conhecimento de nenhum tratamento, depois do acórdão do TC, que tenha sido interrompido, apesar de admitir que “possa ter havido alguns casos de embriões congelados que possam não ter sido transferidos por não ter sido possível contactar os dadores”.