Não aconteceu mas devia estar a acontecer


O país está sobressaltado com a possibilidade de haver uma esquadra onde o ódio, o racismo e a mentira prevalecem sobre os direitos humanos


O país está embrenhado na discussão sobre o que aconteceu, naquele dia de fevereiro, na Cova da Moura e na esquadra de Alfragide.

Os canais de televisão competem por mostrar com minúcia a trajetória de cada uma das balas disparadas no bairro a partir das mais desenvolvidas tecnologias de modelação e realidade virtual, anteriormente aplicadas somente em transmissões de futebol. A tese de que o agente Nunes apenas disparou um tiro para o ar é ridicularizada pela reconstrução tridimensional que mostra a bala a raspar no peito de Jailza, a voltar atrás para a atingir novamente na anca e a fazer uma nova inversão de trajetória para raspar no nariz de Leila, que caminhava na rua.

Apesar das anteriores queixas que relatam agressões a cidadãos negros neste bairro – registadas no MAI, CIG e ACM –, isso não deve fazer-nos esquecer que este agente conhecido por “Shotgun” é inocente até transitar em julgado. Mas já todos percebemos que Nunes não é o único agente com quem os negros devem evitar cruzar-se. Outros dois dos 17 também já têm registos passados de abuso de poder e agressões. Continuam todos em funções, ainda que sob os holofotes da CMTV, cujas equipas de reportagem acompanham todas as movimentações da esquadra de Alfragide. Nem sobraram repórteres para gravar a saída em liberdade do ex-presidente do Sporting.

Ao invés, a RTP não hesitou em interromper a transmissão da partida de futebol para dar conta da saída do tribunal, debaixo de apupos, do grupo de bombeiros distraídos que acorreram à esquadra. Destaque para a bombeira que chamou o INEM declarando ter havido agressões e mais tarde, no verbete, formaliza a versão da “queda”. A mesma que não se lembra de ter visto sinais de agressões ou de ter falado com as vítimas (ainda que testemunhas digam que falou com todas). Particularmente visado foi o bombeiro que assistiu Rui, o rapaz que teve um AVC em criança do qual não recuperou integralmente e a que terão dito: “Agora é que te vai dar um que vais morrer.” Apesar de ter sido encontrado na esquadra com uma tala e o braço imobilizado, o bombeiro mantém que não aparentava sinais físicos de maus–tratos, conforme escreveu no verbete.

O país está sobressaltado ao tomar conhecimento que pode haver uma esquadra onde o ódio, o racismo e a mentira prevalecem sobre os direitos humanos e que não garante a segurança de todos. O governo já anunciou que não tolerará mais manifestações de racismo em qualquer esquadra do país.

Escreve à segunda-feira