José Eduardo dos Santos volta à ribalta com João Lourenço em Lisboa

José Eduardo dos Santos volta à ribalta com João Lourenço em Lisboa


Ex-Presidente roubou protagonismo à visita a Portugal do seu sucessor, que mandou recado para Luanda: “Não temos medo de brincar com o fogo”.


No dia em que começou a primeira visita oficial de João Lourenço a Portugal, o único diário privado angolano de notícias não trazia qualquer referência na primeira página ao acontecimento. E é um acontecimento, não só por ser o retomar normal das relações político-diplomáticas entre os dois países, também porque se trata da primeira visita oficial de um Presidente de Angola a Portugal desde 2009, a terceira visita de Estado apenas em 43 anos de independência do país africano.

O outro diário em papel, “O Jornal de Angola”, que é público, noticiava em manchete a visita, ilustrada com uma foto de João Lourenço e da primeira-dama à chegada ao aeroporto de Figo Maduro, em Lisboa. “O País” tinha como principal foto de capa uma imagem do ex-presidente José Eduardo dos Santos e a frase “Não deixei os cofres vazios”, dita pelo antigo chefe de Estado à imprensa na declaração que marcou para o próprio dia em que Lourenço embarcava para Lisboa.

Desde quarta-feira que é o assunto mais comentado nas redes sociais em Angola. Depois de José Eduardo dos Santos convocar a conferência de imprensa por causa das afirmações de João Lourenço ao “Expresso”, a questão da visita a Portugal “está completamente em segundo plano”, refere uma fonte em Angola. O que justificaria a opção editorial do diário privado, não pertencesse o jornal ao grupo Medianova, de dois próximos do ex-chefe de Estado angolano, o general Hélder Vieira Dias ‘Kopelipa’ e o general Leopoldo Fragoso do Nascimento ‘Dino’. O general Dino foi exonerado por João Lourenço de chefe da Casa de Segurança do Presidente em maio, enquanto o general Kopelipa foi licenciado à reforma por limite de carreira em abril.

Curiosamente, na página da Wikipedia do Grupo Medianova José Eduardo dos Santos surge como principal acionista, tanto na versão em português como na versão em catalão; só em inglês não se faz qualquer referência a acionistas.

Será este o reacender da guerra entre os apoiantes do ex-presidente e do atual? O desagrado de José Eduardo dos Santos com a sua escolha de João Lourenço para lhe suceder começou logo na campanha eleitoral, em agosto, ficou demonstrado no clima gélido da cerimónia de transferência do poder e transformou-se numa guerra enquanto os dois coabitaram como referência dos dois grandes centros de poder em Angola: Lourenço na Presidência, Dos Santos na liderança do MPLA.

“A guerra sempre existiu e ficou bem evidente desde todos aqueles decretos que o antigo presidente fez à última hora para, digamos, amarrar o novo presidente. Continuou com toda a narrativa da passagem do poder e manteve-se muito aguda até à saída de José Eduardo dos Santos de presidente do partido”, diz ao i o analista político angolano Adolfo Maria.

A grande questão que se coloca neste momento é se o ex-presidente terá apoiantes suficientes para abalar o poder de João Lourenço no MPLA e no país. O que disse ao i uma fonte conhecedora dos meandros políticos em Angola, é que, tal como Leopoldo do Nascimento e Vieira Dias, que conseguiram acumular fortuna nos negócios depois do fim da guerra em Angola, existem muitos militares que prosperaram durante a presidência do anterior chefe de Estado e podem sentir-se ameaçados pela política do novo governo. E “são muitos militares contrariados”, refere.

Se João Lourenço é um exímio jogador de xadrez, José Eduardo dos Santos é um insigne manobrador político, sobrevivente de 38 anos de poder. E a declaração aos jornalistas, num homem que sempre manifestou pouca ou nenhuma vontade de estabelecer contactos com a imprensa – e que se contam pelos dedos de uma só mão as entrevistas que deu ao longo da sua presidência –, se já por si seria uma novidade, acabou por ganhar uma dimensão maior por ser na ausência de João Lourenço.

Daí a referência do presidente angolano, no seu discurso na Assembleia da República em Portugal, aos ninhos de vespas que tinha noção de que iria agitar no seu combate contra a corrupção. E, desde Lisboa, a mensagem bem explícita que enviou para Luanda, ainda que envolvida na metáfora, “as picadas não matam” e o que é preciso é “destruir o ninho”.

“Há uma expressão na nossa política angolana que diz ‘somos milhões e contra milhões ninguém combate’. Essa expressão continua viva, não morreu. Portanto, que ninguém pense que, por muitos recursos que tenha, de todo o tipo, consegue enfrentar os milhões que somos. Por isso, não temos medo de brincar com o fogo e vamos continuar a brincar com ele, com a noção de que vamos mantê-lo sempre sob controlo”, avisou o presidente angolano.