Filhos viciados entre nós


Quando é que um jogo passa a ser preocupante? Quando o dia do jogador passa a ser configurado em razão das horas em que pode ou combina jogar


Como explicar a uma criança que jogo a mais pode provocar vício? Às crianças esta explicação, caso não seja compreendida e aceite, pode ser acompanhada por um pacote de regras que limitem as horas de jogo, ou pela introdução de outras atividades que as retirem do raio de ação da influência da consola, ou dos tablets e, até do telemóvel. Estes são os três meios mais utilizados para jogar online e não só.

Mas explicar isto a um adolescente, torna-se um bico de obra. O esforço lexical a que somos sujeitos, na procura de palavras que traduzam os perigos de adição que um indivíduo incorre se jogar mais tempo daquele que é o aceitável, é penoso. Do outro lado, há sempre um argumento pronto a esgrimir, uma certeza absoluta de quem olha para nós como os mensageiros das tolices e da tempestade que nunca há-de vir. “Preocupamo-nos em demasia”, “lemos demasiados artigos que não interessam sobre crianças que não têm cabeça e, por isso, descontrolam-se”, “isso só acontece a quem não tem vida e precisa dos jogos para socializar”… Um chorrilho de respostas sempre prontas na pontinha da língua, como se a lição estivesse estudada para não prolongar a conversa.

Esta falsa sensação de segurança que nos transmitem, é o suficiente para voltarmos costas e regressarmos às nossas tarefas, com um pensamento de fundo que se vai esbatendo, à medida que nos afastamos do local onde tudo acontece. Talvez estejamos a exagerar… será?

Não vou enveredar pelos números crescentes da dependência dos videojogos, nem por casos extremos que são notícia e que nos deixam em alerta para esta situação, nem pelas consequências duradouras que estes hábitos podem infligir a uma criança em crescimento, nem mesmo pelo rendimento escolar que é gravemente afetado quando há excesso de jogo.

Prefiro ir pelas situações mais simples e que, no meu entender, devem ser as que precedem todas as que acabei de descrever acima. Ou seja, aquelas que parecem ser implicância dos pais, mas que até têm razão de ser.

Quando é que um jogo passa a ser preocupante? Quando o dia do jogador passa a ser configurado em razão das horas em que pode ou combina jogar. Se, como exemplo, escolhermos o jogo do momento, Fortnite, torna-se ainda mais fácil de relevarmos certas situações que facilmente se podem agravar, caso os pais não tenham cuidado ou atenção.

Este é um jogo que é jogado online e em comunidade, ou seja, com os amigos da escola, mas também com a “Aditya”, na Índia, ou com o “Naruto”, no Japão, e que, em simultâneo, podem conversar e combinar estratégias para que a equipa sobreviva ao ataque dos adversários. De um momento para o outro, o “Manel”, no seu quarto, está com outros 99 jogadores, dos quais alguns até podem ser da escola ou primos, numa ilha à procura de armas para matar os elementos da outra equipa e a proteger os seus.

Um jogo desta natureza e com estas caraterísticas obriga a que haja uma combinação prévia entre os jogadores, para que se “encontrem” a uma hora específica, no espaço virtual, e partilhem esta aventura. Até aqui não há nada de assinalável, à primeira vista… Mas quando os horários e as rotinas dos amigos que jogam são diferentes, o que pode acontecer é que surjam resistências às horas para fazer as refeições, para os banhos, para sair de casa, para estudar, para fazer os trabalhos de casa, para ir dormir… porque deixam de ser detentores do seu tempo para passarem a alterar os seus horários em função da disponibilidade de quem está do outro lado do écran. Chegam os conflitos familiares, com uma interferência externa invisível, mas ditadora, que se agravam na proporção da adição que se vai desenvolvendo pelo jogo.

A acrescentar a isto, há uma outra alteração que é mais difícil de detetar no início, e que se prende com o tempo que passam a jogar quando os pais não estão em casa. Não é por acaso, que o aumento de jogadores cresceu a partir de junho, período coincidente com as férias escolares. Para os pais torna-se complicado detetar situações destas, ainda em fase de germinação. Quando constatam que há perigo, o jogador já está arrebatado pelas malhas do vício, e o regresso à normalidade já é mais conflituoso para ambas as partes. A tónica da discussão assenta no tempo que é dedicado ao gaming, complicada quando as partes envolvidas têm diferentes perceções do tempo.

Em junho, a Organização Mundial de Saúde [OMS] classificou esta dependência como uma doença mental, contudo, em Portugal, ainda não temos uma radiografia dos números sobre esta realidade que bem pode ser um iceberg. Os registos conhecidos refletem os pedidos de consulta para o tratamento desta adição. No Hospital de Santa Maria existe mesmo uma consulta da especialidade que procura acompanhar os pais neste processo desestruturante e devolver aos jovens o equilíbrio perdido a favor do vício por jogar. Segundo a OMS, estamos perante um quadro clínico de adição quando um indivíduo recorre persistentemente ao jogo, alterando o seu padrão de comportamento normal, evidenciando sintomas como: o jogo passa a ser o foco central dos seus dias (deixam de querer ir às atividades que antes lhes davam prazer, fazer programas em família); aumento da frequência com que se joga, mesmo depois de ter sido prejudicado pelas horas excessivas a jogar (falta de rendimento escolar, p.ex.); falta de controlo pessoal nas horas de jogo e irascibilidade frequente perante a privação de jogar.

É um desafio evitar que estas realidades entrem nas nossas casas e nas nossas famílias, envenenando as relações entre pais e filhos e acrescentando-lhes ruídos externos que causam conflitos onde não existiam. Mas com equilíbrio, respeito e muita atenção, num período em que são mais permeáveis a este tipo de aliciamentos, a razoabilidade, a experiência e o amor de quem está do lado deles, é um passo gigante nesta caminhada.


Filhos viciados entre nós


Quando é que um jogo passa a ser preocupante? Quando o dia do jogador passa a ser configurado em razão das horas em que pode ou combina jogar


Como explicar a uma criança que jogo a mais pode provocar vício? Às crianças esta explicação, caso não seja compreendida e aceite, pode ser acompanhada por um pacote de regras que limitem as horas de jogo, ou pela introdução de outras atividades que as retirem do raio de ação da influência da consola, ou dos tablets e, até do telemóvel. Estes são os três meios mais utilizados para jogar online e não só.

Mas explicar isto a um adolescente, torna-se um bico de obra. O esforço lexical a que somos sujeitos, na procura de palavras que traduzam os perigos de adição que um indivíduo incorre se jogar mais tempo daquele que é o aceitável, é penoso. Do outro lado, há sempre um argumento pronto a esgrimir, uma certeza absoluta de quem olha para nós como os mensageiros das tolices e da tempestade que nunca há-de vir. “Preocupamo-nos em demasia”, “lemos demasiados artigos que não interessam sobre crianças que não têm cabeça e, por isso, descontrolam-se”, “isso só acontece a quem não tem vida e precisa dos jogos para socializar”… Um chorrilho de respostas sempre prontas na pontinha da língua, como se a lição estivesse estudada para não prolongar a conversa.

Esta falsa sensação de segurança que nos transmitem, é o suficiente para voltarmos costas e regressarmos às nossas tarefas, com um pensamento de fundo que se vai esbatendo, à medida que nos afastamos do local onde tudo acontece. Talvez estejamos a exagerar… será?

Não vou enveredar pelos números crescentes da dependência dos videojogos, nem por casos extremos que são notícia e que nos deixam em alerta para esta situação, nem pelas consequências duradouras que estes hábitos podem infligir a uma criança em crescimento, nem mesmo pelo rendimento escolar que é gravemente afetado quando há excesso de jogo.

Prefiro ir pelas situações mais simples e que, no meu entender, devem ser as que precedem todas as que acabei de descrever acima. Ou seja, aquelas que parecem ser implicância dos pais, mas que até têm razão de ser.

Quando é que um jogo passa a ser preocupante? Quando o dia do jogador passa a ser configurado em razão das horas em que pode ou combina jogar. Se, como exemplo, escolhermos o jogo do momento, Fortnite, torna-se ainda mais fácil de relevarmos certas situações que facilmente se podem agravar, caso os pais não tenham cuidado ou atenção.

Este é um jogo que é jogado online e em comunidade, ou seja, com os amigos da escola, mas também com a “Aditya”, na Índia, ou com o “Naruto”, no Japão, e que, em simultâneo, podem conversar e combinar estratégias para que a equipa sobreviva ao ataque dos adversários. De um momento para o outro, o “Manel”, no seu quarto, está com outros 99 jogadores, dos quais alguns até podem ser da escola ou primos, numa ilha à procura de armas para matar os elementos da outra equipa e a proteger os seus.

Um jogo desta natureza e com estas caraterísticas obriga a que haja uma combinação prévia entre os jogadores, para que se “encontrem” a uma hora específica, no espaço virtual, e partilhem esta aventura. Até aqui não há nada de assinalável, à primeira vista… Mas quando os horários e as rotinas dos amigos que jogam são diferentes, o que pode acontecer é que surjam resistências às horas para fazer as refeições, para os banhos, para sair de casa, para estudar, para fazer os trabalhos de casa, para ir dormir… porque deixam de ser detentores do seu tempo para passarem a alterar os seus horários em função da disponibilidade de quem está do outro lado do écran. Chegam os conflitos familiares, com uma interferência externa invisível, mas ditadora, que se agravam na proporção da adição que se vai desenvolvendo pelo jogo.

A acrescentar a isto, há uma outra alteração que é mais difícil de detetar no início, e que se prende com o tempo que passam a jogar quando os pais não estão em casa. Não é por acaso, que o aumento de jogadores cresceu a partir de junho, período coincidente com as férias escolares. Para os pais torna-se complicado detetar situações destas, ainda em fase de germinação. Quando constatam que há perigo, o jogador já está arrebatado pelas malhas do vício, e o regresso à normalidade já é mais conflituoso para ambas as partes. A tónica da discussão assenta no tempo que é dedicado ao gaming, complicada quando as partes envolvidas têm diferentes perceções do tempo.

Em junho, a Organização Mundial de Saúde [OMS] classificou esta dependência como uma doença mental, contudo, em Portugal, ainda não temos uma radiografia dos números sobre esta realidade que bem pode ser um iceberg. Os registos conhecidos refletem os pedidos de consulta para o tratamento desta adição. No Hospital de Santa Maria existe mesmo uma consulta da especialidade que procura acompanhar os pais neste processo desestruturante e devolver aos jovens o equilíbrio perdido a favor do vício por jogar. Segundo a OMS, estamos perante um quadro clínico de adição quando um indivíduo recorre persistentemente ao jogo, alterando o seu padrão de comportamento normal, evidenciando sintomas como: o jogo passa a ser o foco central dos seus dias (deixam de querer ir às atividades que antes lhes davam prazer, fazer programas em família); aumento da frequência com que se joga, mesmo depois de ter sido prejudicado pelas horas excessivas a jogar (falta de rendimento escolar, p.ex.); falta de controlo pessoal nas horas de jogo e irascibilidade frequente perante a privação de jogar.

É um desafio evitar que estas realidades entrem nas nossas casas e nas nossas famílias, envenenando as relações entre pais e filhos e acrescentando-lhes ruídos externos que causam conflitos onde não existiam. Mas com equilíbrio, respeito e muita atenção, num período em que são mais permeáveis a este tipo de aliciamentos, a razoabilidade, a experiência e o amor de quem está do lado deles, é um passo gigante nesta caminhada.