1. Temos defendido que Mário Centeno tem uma ambição política ilimitada. Sendo um economista prestigiado e um liberal por natureza e vocação académica, Centeno aceitou ser ministro das Finanças de António Costa como “porta de entrada” para lugares decisórios que se mostrem ajustados ao talento que o próprio julga que tem, porventura merecidamente. Acresce ainda que Mário Centeno se incompatibilizou com Carlos Costa, governador do Banco de Portugal, no período “troikista” recente da nossa história. Curiosamente, a única personalidade política que fica bem na nova incursão memorialista de Cavaco Silva (para além do próprio) é Mário Centeno, a quem o anterior Presidente da República reconhece credenciais como economista e, subtilmente, como político. Na verdade, a premissa implícita na tese de Cavaco Silva é a de que Mário Centeno estava certo – e Maria Luís Albuquerque (para além, naturalmente, de Passos Coelho) errada. Ou seja: Cavaco Silva isola Mário Centeno da geringonça e escolhe-o como o político que melhor interpretou o pensamento presidencial de então.
2. Em termos mais claros: Cavaco Silva teria atuado – quer no período crítico de intervenção da troika, quer nos anos pós-austeridade (que, infelizmente, coincidem com os anos geringonçados) – como Mário Centeno. O liberal Mário limitou-se a agir como Cavaco Silva agiria acaso exercesse funções de economista no Banco de Portugal ou de ministro das Finanças coevamente. Acresce ainda que, ao dedicar encómios ao economista liberal de centro-direita, doutorado na escola americana “capitalista” de Harvard, o ex-Presidente Cavaco Silva pretende dar um sinal inequívoco de distanciamento face ao anterior executivo, contrariando, consequentemente, a “narrativa” oficial da esquerda (que o odeia) e do Presidente em exercício de funções, Marcelo Rebelo de Sousa (que o odeia ainda mais). Dito isto, o percurso político de Mário Centeno tem sido deveras interessante (digno de um bestseller literário). Porquê? Porque Mário Centeno é um retrato fiel da geringonça – um conjunto de indivíduos, políticos e tecnocratas, que aceitaram defender uma narrativa, implementar um programa político, negociar com partidos e visões políticas que desprezam e que contrariam o código genético do PS, apenas para assegurar a sua perpetuação no poder. Apenas para atingir os seus sonhos políticos pessoais – António Costa sonhou ser primeiro-ministro e teria de o ser, independentemente da vontade dos portugueses; Mário Centeno tinha como plano pessoal (não escondido nem disfarçado) ser ministro das Finanças como trampolim para um dos seus cargos de sonho: ou governador do Banco de Portugal ou um alto cargo político europeu. Mário Centeno é, pois, um homem de direita num governo apoiado pela extrema-esquerda – aplicando um programa que é… absolutamente nada. Um vazio autêntico. Nem sequer se poderá falar em programa – trata-se de uma miríade de soluções negociadas com os partidos de extrema-esquerda, dando-lhes o que eles necessitam para não afugentar as respetivas bases sociais de apoio.
3. O que é verdadeiramente da mão de Mário Centeno no Orçamento do Estado? A sua autoridade como tecnocrata realista, as suas premissas ideológicas de centro-direita, que impedem certas loucuras esquerdistas de António Costa na preparação do Orçamento; e a sua capacidade quase militar (um pouco melhor que a de “Azerelho” Lopes a encobrir certas realidades) no controlo, em concreto, dos gastos públicos, em sede de execução orçamental. Numa frase: o mérito de Mário Centeno consiste em cativar despesas sem que ninguém lhe chame cativações; em aumentar a receita tributária, subindo impostos, sem que a maioria dos portugueses dê por isso; em prosseguir a política de diminuição das garantias dos contribuintes, mas sempre com um sorriso na face. Nem se diga que Mário Centeno tem uma força política tremenda dentro do governo que lhe advém da sua condição de presidente do Eurogrupo: a sua escolha para liderar este grupo “informal formalizado” da UE prendeu–se, entre outras razões secundárias, com o facto de a Alemanha ter querido sinalizar que mesmo a esquerda se havia rendido à sua ortodoxia financeira. Mário Centeno beneficiou, destarte, da conjuntura política europeia, em especial do imperativo intuído por Angela Merkel de forjar uma nova política de comunicação e relações públicas. Assistimos, pois, a um enredo bizarro de duplicação de personalidade política: o Mário, ministro das Finanças português, revolta-se frequentemente contra o Centeno, presidente do Eurogrupo. O Mário apela à justiça socialista (que não social), aprova um Orçamento eleitoralista e defende-o publicamente, critica o governo anterior e ataca os jornalistas; já o Centeno apela ao rigor das contas públicas, condena os “populismos orçamentais”, repreende o governo italiano por fazer o que o primeiro-ministro do Mário prometeu (“bater o pé à Europa”), chumbando inclusivamente o Orçamento apresentado para mostrar uma disciplina orçamental férrea, digna da ortodoxia que o governo português do Mário tanto critica (criticava?). Eis um caso curioso de psicologia política – como Mário Centeno consegue ser tudo e o seu contrário em simultâneo. Não nos admiramos que o Mário – quando tem laivos de Centeno e ignora Costa – , aqui em Portugal, já comece a denotar sinais de cansaço psicológico evidente, exteriorizados na prepotência com que se dirige aos portugueses, na irritação com que responde a questões (algumas pertinentes) dos jornalistas, na crispação e desespero que revela na sua postura.
4. Em suma: o Centeno está farto de ser Mário – e quer converter-se na sua personalidade dominante, que é a do presidente do Eurogrupo. Como agradecimento a António Costa, o Mário voltou a alinhar, quanto ao OE 2019, com as prioridades políticas do primeiro-ministro, mesmo que a consciência lhe diga que está prejudicando Portugal e o futuro dos portugueses. O Centeno, porém, não deixa(rá) a consciência do Mário sossegar. Resultado: em 2019, seja qual for o resultado das legislativas, o Centeno tirará o Mário do governo. Aquele que Cavaco Silva viu como o seu discípulo político e científico dedicar-se-á, em exclusivo, à política europeia a partir do próximo ano. Bye-bye, Mário, o socialista; hello, Centeno, o burocrata financeirista europeu!
joaolemosesteves@gmail.com
Escreve à terça-feira