Há uma guerra antiga no concelho de Braga por causa de uma casa com quintal. Na aldeia de Tebosa vivem pouco mais de mil habitantes e parte da vizinhança foi chamada a tribunal para contar a quem pertence uma vivenda no centro do povoado: se à Junta de Freguesia ou se aos herdeiros da última pessoa que lá viveu.
No início deste verão, o tribunal cível de Vila Verde tentou pôr fim ao diferendo, dando razão à família de A.C.L. e anulando a decisão de um conservador que, em 2016, decidiu dar a casa à Junta. Provou-se que a autarquia prestou falsas declarações para tirar o imóvel aos herdeiros e que houve testemunhas que não disseram a verdade à Justiça. Mesmo assim, ninguém foi responsabilizado.
Há cerca de dois anos, o presidente da Junta de Freguesia de Tebosa, Marcelino Sá, juntamente com o tesoureiro e um secretário deram entrada com um processo de justificação predial – uma espécie de usucapião que a lei prevê para casos muitos específicos em que se reclama a posse de um bem sem que existam documentos que o possam provar – na Conservatória do Registo Predial de Terras de Bouro. A Junta reclamava a posse de uma vivenda com 50 metros quadrados, com jardim, localizada no centro da aldeia.
Para isso, os autarcas alegaram, por escrito, que a autarquia tinha comprado a casa “por volta de 1970/1980” a A. C.L., que morreu em julho de 1996. E que, a partir dessa altura, a Junta passou a “possuir imediatamente” o imóvel, “a cultivar, a fazer limpeza, arranjos e melhoramentos”, usando a vivenda como “arrumos” à vista de todos os habitantes da freguesia. O presidente garantiu ainda que, desde então, a Junta passou a pagar o IMI da casa, sendo que nunca conseguiu reunir os herdeiros do anterior dono. “Uns por terem falecido ou por estarem em parte incerta ou por nem saberem da existência dos mesmos”, lê-se no processo de justificação predial que a Junta entregou na conservatória de Terras de Bouro e a que o i teve acesso.
Acontece que os herdeiros existem, mas estavam longe de imaginar que a Junta de Freguesia se preparava para lhes ficar com a casa, sendo que a Conservatória chegou mesmo a declarar a autarquia como “proprietária, dona e legítima possuidora” da vivenda e da propriedade.
Quatro dos herdeiros juntaram-se e tentaram impugnar a decisão do conservador junto do tribunal cível de Vila Verde. E não foi difícil, porque conseguiram provar, de acordo com a sentença do caso, que o i consultou, que a Junta mentiu à Justiça. Desde logo, considerou o juiz, porque a autarquia “não comprou” a vivenda a A.C.L., como declarou à conservatória, nem pagou o respetivo IMI. Também ficou provado que a Junta “nunca exerceu qualquer ato material ou fruiu” do espaço. Tão pouco o usou para “arrumos”. Além disso, o juiz considerou que o processo de justificação predial – a figura jurídica a que a Junta recorreu para reclamar a casa – nem sequer poderia ter sido invocada. “Só deve ser usada nos casos em que não seja possível reunir toda a documentação sobre um determinado bem e quando não haja controvérsia sobre a titularidade”, lê-se na sentença, que dá como provado que houve trabalhos de corte de mato na propriedade, mas só a seguir ao ano de 2015 (e não há cerca de 20 anos, como o presidente garantiu por escrito). Assim, e mesmo que não houvesse herdeiros, três anos seria tempo “insuficiente” para que a propriedade pudesse ser alvo de usucapião.
Depois de a família ter tentado reaver a casa, a Junta de Freguesia não se deu por vencida e ainda tentou impugnar os argumentos dos herdeiros. Alegou que o tribunal não era “competente” para resolver o litígio e até pôs em causa a “legitimidade” da família. Pelo meio, tentou alegar que era “urgente tratar do imóvel” e que “se nada tivesse sido feito até aos dias de hoje, o edifício e o logradouro estariam repletos de vegetação”. “Muito se estranha o súbito interesse [da família] no prédio», chegou mesmo a argumentar a Junta de Freguesia – que acabou por perder a casa, ainda que não tenha sido condenada por falsas declarações.