Censura. Estará a liberdade de expressão em risco?

Censura. Estará a liberdade de expressão em risco?


O aumento da intolerância no mundo está a colocar em risco a liberdade de expressão. A censura é um dos seus sintomas. A vizinha Espanha foi o país com o maior número de músicos condenados a penas de prisão em 2017. A internet volta a ter menos liberdade pelo sétimo ano consecutivo, de acordo com…


O diretor do Museu de Serralves, João Ribas, demitiu-se do cargo acusando o conselho de administração de censurar duas peças da exposição do fotógrafo Robert Mapplethorpe. A administração nega qualquer censura e, na comissão parlamentar de Cultura, José Pacheco Pereira, membro do conselho, alertou para a banalização do uso da palavra censura, que diz estar a ser usada para se “resolver uns problemas de divergência cuja natureza” nem se percebe bem.

“A minha preocupação, como alguém que conhece a censura, é o abastardamento da palavra censura. Ou seja, que se passe a chamar censura a coisas que não têm nada de censura – e isso é civicamente relevante”, afirmou o comentador político aos deputados, alertando para o risco que isso representa para a democracia. As versões de ambos os lados são conflituantes e não se sabe se houve ou não censura, mas nem por isso o caso deixou de espoletar o debate em Portugal e no mundo. 

A intolerância está a aumentar no mundo e a censura é um dos seus sintomas. Arte, política, literatura, internet e redes sociais não lhes conseguem escapar em pleno séc. xxi, caracterizado como o da era da informação. “A censura parece invisível, mas a lavagem omnipresente dos sentimentos e perceções das pessoas cria limites à informação que as pessoas recebem e selecionam e em que confiam”, alertou o artista e ativista chinês Ai Weiwei, conhecido por ser crítico de Pequim. “É informação escolhida, filtrada e atribuída no seu lugar [da livre informação], restringindo inevitavelmente a vontade livre e independente dos seus leitores e espetadores.” 

Em 2017 assistiu-se a uma rápida deterioração dos direitos e liberdades artísticas, segundo a Freemuse, organização que monitoriza e documenta os ataques contra a liberdade artística por todo o mundo. No seu primeiro relatório anual, intitulado “The State of Artistic Freedom 2018” (“O estado da liberdade artística 2018”), foram documentados 553 violações à liberdade artística em 78 países, com 48 artistas a serem condenados a penas num total de 188 anos de prisão pelas suas obras de arte. Isto equivale a quase um artista por semana obrigado a responder em tribunal por causa da sua criação artística. 

Ao mesmo tempo, milhares de obras – arte visual, música, peças de teatro, dança e literatura – foram censuradas, vandalizadas ou destruídas. E a organização alerta que os casos apresentados são uma ínfima parte do número real de violações de um direito fundamental, com a grande maioria a não serem documentadas. “Incluímos no relatório apenas aqueles que conseguimos verificar mas, na prática, podem existir dois mil casos, ou até mais”, afirmou o editor executivo do Freemuse, Srirak Plipat, ao jornal “Equal Times”. Uma das razões para a não documentação de muitos casos prende-se com as barreiras linguísticas, ainda que a organização tenha escritórios em mais de 30 países. “Existe uma barreira linguística. Os países cujas línguas não falamos podem não estar referenciados.”

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, define no artigo 19.o que “todo o ser humano tem o direito à liberdade de opinião e expressão”, incluindo o de “procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”. Mas da lei internacional à realidade vai um pequeno grande passo.

Censura na vizinha espanha Entre os instrumentos para se tentar fugir aos condicionamentos impostos por quem censura encontram-se as redes sociais, pelo menos no início. E, ao contrário do que se possa pensar, a censura não tem acontecido apenas nos países mais conhecidos pelas violações de direitos humanos, como a China ou a Coreia do Norte, por exemplo. Também na vizinha Espanha, os artistas têm visto a sua liberdade seriamente condicionada, principalmente quando as suas obras vão contra o catolicismo e/ou a monarquia. Foi o caso de um conjunto de rappers – Pablo Hasél, Valtonyc e o coletivo La Insurgencia – quando decidiram publicar nas redes sociais a música “Los Borbones son unos Ladrones” (Os Bourbons são uns ladrões, em português), que se referia a Iñaki Urdangarin, cunhado do rei espanhol, Filipe vi, condenado a cinco anos de prisão por desviar fundos públicos para proveito próprio. A canção foi também um protesto contra a detenção de 14 outros rappers por terem criticado a monarquia nas suas músicas. 

“O videoclipe [da música] é um desafio porque a letra foi considerada criminosa pelo Tribunal Constitucional, o mais importante do país”, explicou César Straw-berry, vocalista da banda Def Con Dos e um dos artistas que participaram no vídeo, acrescentando que Espanha é um país “fraco em direitos e liberdades”. Segundo o Freemuse, Espanha foi o país com o maior número de músicos condenados a penas de prisão no ano passado. 

Da música ao desenho: os cartoonistas políticos são dos artistas mais criticados e censurados pelas suas obras, tanto por serem controversas como, por vezes, subversivas. A revista satírica árabe “Al--Hudood”, criada em 2013, confronta-se com esta realidade todos os dias. Os seus artistas, espalhados por mais de 40 países, mantêm o anonimato para se protegerem. Só o seu chefe de redação e cofundador, Isam Uraiqat, responde pelo que a revista publica. “Não quisemos parecer esquivos, como se tivéssemos algo a esconder. Então decidimos mostrar uma cara para sermos capazes de falar sobre o que fazemos”, explicou Uraiqat ao “Equal Times”.

Censura, ameaças e represálias tornaram-se o dia-a-dia da publicação e, para lhes fugir, esta decidiu apostar nas redes sociais. Durante uns tempos conseguiu chegar a milhares de pessoas, mas os seus opositores rapidamente se organizaram para a boicotar. “Temos um problema gigante com a censura nas redes sociais”, explicou o chefe de redação. “De repente, dez mil pessoas começaram a denunciar o nosso conteúdo no Facebook e perdemos o acesso à nossa página. Contactámos o Facebook para lhes explicar o que se estava a passar e apenas nos disseram: ‘Se a comunidade pensa que isso não é bom, então não é bom’”, acrescentou. 

“O sucesso de empresas como o Facebook é estarem sempre do lado ‘certo da história’ ao darem o conteúdo a que as pessoas querem aceder”, explicou Pedro Pereira Neto, doutorado em Sociologia Política e professor no ISCTE-IUL. “Quando os discursos de ódio começam a prejudicar a imagem da empresa e a ter consequências na sua cotação em bolsa, aí, a velocidade de resposta é completamente diferente”, disse. Até terem esse impacto, são permitidos na rede social, principalmente se o algoritmo lhes der protagonismo e alcance na realidade virtual.

Os limites de um direito As publicações de cartoons satíricos geram não poucas vezes o debate entre o princípio da liberdade de expressão e o respeito pelas religiões. Os cartoons que retratam o profeta Maomé, ato considerado como blasfémia pelo islão, são disso exemplo. Os próprios cartoonistas são até alvo de ameaças e atentados terroristas – relembremos o ataque contra a redação do francês “Charlie Hebdo”, em França. 

A liberdade de expressão deve-se limitar à linha que separa a crítica da religião? João Neto, diretor do Museu da Farmácia, em Lisboa, lança a questão: “Se, dentro de um conceito europeu, uma pessoa tem a liberdade para o fazer, nós defendemos a liberdade ou não?” “Se lutámos tantos anos por essa liberdade, então temos de a manter.”

João Mineiro, doutorando em Antropologia pelo ISCTE-IUL, também defende que “não pode haver nenhuma cedência em relação à censura, seja num cartoon, numa notícia ou num ensaio”. “Não podemos ceder e não falar de determinados temas porque eles incomodam. Se se abre um precedente para um caso, é a autocensura generalizada e consentida”, diz. Referindo “não ser fã dos cartoonistas que centram todo o seu trabalho em fazer humor às custas dos mais marginalizados”, mesmo assim, o “conflito faz parte da sociedade e não o aparente consenso que, esse sim, só produz formas de pensamento único”. Questionado sobre os limites à liberdade de expressão, Pereira Neto refere que devem ser os que “estão consagrados na Constituição”. Ou seja, “a linha limite para a liberdade de expressão são os direitos das outras pessoas, como o de não ser difamado ou discriminado pela etnia, género e orientação sexual”. 

Mas também acontece o princípio da liberdade de expressão ser utilizado como escudo para agendas políticas com o intuito de simplesmente polarizar a sociedade, ignorando o próprio debate que se diz querer aprofundar. Sabendo que retratar o profeta Maomé produz reações negativas dos muçulmanos, o político de extrema-direita holandês Gert Wilders decidiu organizar para novembro um concurso de cartoons a retratar o profeta. “O objetivo dele não é começar um debate sobre o islão. O propósito é provocar”, disse o primeiro-ministro holandês, Mark Rutte, quando questionado sobre o posicionamento do governo em relação ao polémico concurso. O executivo holandês defendeu o direito de Wilders organizar o concurso, mas não alinhou nos seus intentos. E, confrontado com as crescentes pressões, Wilders acabou mesmo por cancelá-lo, culpando os muçulmanos em geral: “Para evitar o risco de violência islâmica, decidi que o concurso não irá realizar-se.” 

A intolerância e consequente censura não tem deixado de avançar nos últimos anos. João Neto considera que a tendência é motivada pela “incapacidade de as pessoas não conseguirem neste momento diferenciar a boa e a má informação”. “Intolerância cria censura e os extremismos levam à intolerância”, alerta.

As fake news são responsáveis pela propagação de ideias e notícias falsas que criam um clima propício à intolerância e à censura, ainda que estejam longe de ser as únicas a fazê-lo. O algoritmo do Facebook, que limita o alcance das publicações a quem concorda com elas, produz uma tendência à formação de bolhas. Por exemplo, na segunda volta das eleições presidenciais brasileiras, tanto os apoiantes de Jair Bolsonaro como os de Fernando Haddad só falam entre si. Neste sentido, o Facebook não é apenas um instrumento de comunicação, ajuda a polarizar os extremos e a rarefazer o debate, num sentido duplo de reflexo e catalisador de uma realidade de antagonismos.

“A censura e a manipulação têm aumentado nos últimos anos, não é de agora”, diz Mineiro. “Têm é novos instrumentos e um contexto político conservador que permitem que aconteça de forma muito mais aberta e assumida”, acrescenta, referindo-se às redes sociais e à internet em geral. No entanto, recusa demonizar ou endeusar as redes sociais, afirmando que são um “simples espelho das sociedades e das suas próprias contradições e conflitos”. 

Por um lado, continua Mineiro, “há mais pessoas a tomar a palavra”, com novos temas a entrar no debate político que antes eram ignorados; por outro, as redes sociais são um espaço de manipulação política, com as fake news. “Quando um jovem negro partilha uma história de violência policial através de um vídeo e chega a milhares de pessoas em poucos segundos ou quando se tem capacidade para organizar uma concentração de um dia para o outro a contestar a misoginia de uma decisão judicial que liberta violadores, isso mostra que há cada vez mais pessoas a partilharem informações, as suas narrativas”, afirma o antropólogo. 

O princípio da liberdade de expressão não pode ser indissociado do acesso dos atores aos instrumentos necessários para se exprimirem. A liberdade de expressão está consagrada como direito universal, mas o seu alcance difere conforme os recursos que cada um possui. Com o surgimento das redes sociais, reflete Mineiro, os média deixaram de ser os únicos a conseguir “hierarquizar os temas” em debate nas sociedades; elas dão voz a quem antes não a tinha, principalmente às minorias marginalizadas, desde sempre as mais prejudicadas. Com a perda dessa função, os média também perderam a capacidade de filtrar e corroborar a informação veiculada, uma das suas funções de serviço público.

Um espaço que nunca foi livre Mas se a internet nunca foi um espaço de liberdade, por pertencer a um punhado de grandes empresas, como o Google ou o Facebook, e ser encarada como espaço de negócio, como explicou Pereira Neto, a verdade é que o tem sido cada vez menos. Os Estados têm avançado com restrições cada vez maiores, aliando-se a essas empresas para obterem informações que de outra forma não obteriam com tanta facilidade, como as denúncias do antigo analista da Agência de Segurança Nacional norte-americana, Edward Snowden, demonstraram. “Estas empresas sempre foram muito permeáveis às influências do Estado. Escândalos desses já aconteceram e continuarão a acontecer no futuro”, resume Pereira Neto. 

Cada vez menos liberdade Não é só com estas alianças que os Estados tentam controlar o espaço virtual, mas também com mecanismos próprios. E, como consequência, a liberdade na internet “diminuiu em 2017 pelo sétimo ano consecutivo”, segundo o relatório “Freedom on net 2017” (Liberdade na net 2017), da Freedom House. 

Uma das tendências realçadas pelo relatório é o ataque dos censores do Estado às ligações móveis por motivações políticas e de segurança, principalmente em áreas povoadas por minorias étnicas e religiosas. A China, onde o Facebook, o Instagram e o WhatsApp são proibidos, fê-lo no Tibete, e a Etiópia em Oromo, por exemplo. Ao mesmo tempo, os governos têm apostado em recursos para limitar ao máximo as transmissões em direto, principalmente de protestos políticos, sob o argumento de se estar a transmitir violência. Todavia, as restrições são generalizadas, impedindo os utilizadores de quaisquer transmissões. As mobilizações populares através das redes sociais na chamada Primavera Árabe, em 2011, mantêm-se frescas na memória de muitos regimes autoritários.

Os aparelhos estatais também têm encetado uma série de ataques informáticos contra os média, sites da oposição e organizações de direitos humanos. O relatório explica que o “custo baixo das ferramentas de ciberataques permitiu não apenas aos governos centrais, mas também aos locais e às forças de segurança, obtê-las e usá-las contra os potenciais adversários, incluindo aqueles que denunciam corrupção e abusos”. Entre os países que usam estas práticas encontram–se o México, a China, o Bahrein e o Azerbaijão. 

Por fim, os Estados têm ainda imposto novas restrições às redes privadas virtuais (VPN, na sigla em inglês), frequentemente utilizadas para contornar a censura dos Estados na internet. Neste momento, 14 Estados restringiram o uso dessas redes, enquanto outros seis avançaram com novas restrições em 2017. Por exemplo, o governo chinês requer o registo dos “VPN aprovados” e avançou com o bloqueio de vários serviços não registados.

Segundo o documento, os Estados com a internet menos livre são China, Síria, Etiópia, Irão, Cuba e Usbequistão. No ranking oposto da tabela encontram-se Islândia, Estónia, Canadá, Alemanha e Estados Unidos. Portugal não foi incluído na análise. 

Mas a era da informação também é a da desinformação. O uso de táticas de manipulação e desinformação desempenhou um papel importante nas eleições de pelo menos 18 países, incluindo os Estados Unidos, elevando a polarização nas sociedades. Nos EUA, a investigação à interferência russa nas eleições presidenciais de 2016 já dura há mais de um ano.