Em França, entre a guarda avançada que emergiu no mundo académico na sequência dos eventos do Maio de 68, aparentemente, Paul Virilio figura num segundo plano face a figuras como Foucault, Deleuze, Baudrillard e Derrida, intelectuais que adquiriram o estatuto de celebridades, não só pela ousadia das suas ideias e propostas, como pela atitude desafiadora. Era um bando animado que mostrava uma certa apetência para se envolver em rixas, e mantinham entre si uma competição nem sempre saudável. Mas com a morte de Virilio, aos 86 anos, no passado dia 10, um balanço sobre o corpo de trabalho que nos deixa obriga-nos a tomar em conta como os seus instintos estavam certos em relação aos incertos tempos que se avizinhavam.
Em pleno século XXI, é hoje evidente que este filósofo e urbanista francês teve uma percepção visionária das mudanças que estavam a operar-se no mundo. E já na década de 70 começou a focar grande parte dos seus estudos na análise do impacto social da tecnologia, apercebendo-se de que a velocidade, como o tempo e o espaço, faz parte das categorias transcendentais da percepção. Mas não apenas isso: Virilio reconheceu que, uma vez que o tempo está estreitamente relacionado com o poder, a velocidade e o modo como é empregue passa a ter um peso que faz dela uma forma de violência e um meio essencial de controlo nas sociedades modernas.
Nascido em Paris em 1932, filho de um comunista e refugiado político italiano e de uma católica francesa, Virilio dizia-se um «filho da guerra total», pelo impacto que a II Guerra Mundial teve na sua infância, testemunhando o bombardeamento de Nantes, no noroeste de França, em 1943. «A guerra foi a minha universidade. Tudo partiu dali», disse numa entrevista, lembrando que, ao passear por entre os escombros, sentiu a fragilidade que os grandes edifícios urbanos escondem, e foi a essa visão que ficou a dever-se o título de uma das suas obras centrais: Estética da desaparição.
Assim, o projecto da construção de um novo mundo passa, para Virilio, pelo seu olhar sobre a arquitectura, e o pensamento que evoluiu da sua obsessão com os bunkers ao longo da costa atlântica. De resto, como recordou certa vez, nos anos da Guerra, ainda miúdo, desenhava as plantas de bunkers que passava à resistência. E a atracção pela arquitectura nasce, por isso, de uma espécie de desespero: «A destruição de uma cidade como Nantes foi para mim uma revelação da relatividade das construções. A partir daí, tive vontade de trabalhar com a resistência, mas a resistência arquitectónica, aquilo que aguenta, que dura: a cidade».
Como aponta Mark Lacy, um catedrático da Universidade de Lancaster que tem escrito extensamente sobre a obra de Virilio, os livros do filósofo – que poderiam ser encarados como contrapontos académicos para os romances de J.G. Ballard (que também viveu o trauma da II Guerra na infância) – resultam do seu empenho «em compreender o papel da guerra no nosso passado e a forma como pode moldar o nosso futuro». E Lacy recorda, ainda, uma das entrevistas de Virilio, em que refere a sensação que teve ao ver uma miúda que vivia na vizinhança ser abatida a tiro por um soldado alemão, e que foi como se o mundo tivesse a permanência de um set de filmagens de uma produção cinematográfica.
No trabalho que desenvolveu como arquitecto, ao lado de Claude Parent no grupo Architecture Principe, que os dois fundaram no início dos anos 60, promoveu a ideia de uma «função oblíqua» (dos solos, da gestão do espaço urbano) uma solução possível para a crise das cidades, uma forma de promover «uma nova relação entre os seres humanos e o seu ambiente», e de segurar a vida pública que estava a ser erodida pelas estruturas funcionais voltadas para o conforto, a conformidade e a eficiência a favor do consumo e geradoras de passividade. O manifesto do grupo postulava «o fim da vertical como eixo de elevação e o fim da horizontal como plano permanente, em benefício do eixo oblíquo e do plano inclinado», subvertendo conceitos tradicionais de arquitetura. Construída em 1966, a igreja de Sainte-Bernadette du Banlay, em Nevers, é um dos mais emblemáticos edifícios fiel a estes princípios.
Sem cair no pessimismo, não houve abalo que o tenha feito render-se a uma mentalidade conservadora ou a atitudes reaccionárias. Tinha claro que não há forma de recusar os avanços da ciência, e que de nada nos serve rejeitar a tecnologia; por isso, também nunca se viu como um revolucionário, defendendo que aquilo de que precisamos é de uma «visão revelacionária». Uma noção que perpassa os mais de 30 livros que publicou, abordando temas como a ecologia, a ocupação do espaço público e a revolução digital, é a necessidade de se investigar os acidentes e as catástrofes que resultam do nosso desejo de segurança, de abdicarmos de todas as cautelas, dedicando uma «fé absoluta no progresso», e na ideia de que um dia, com a ajuda dos novos avanços tecnológicos, será possível vivermos em ambientes absolutamente controlados, livres de todo o risco. Num dos seus livros mais influentes, Vitesse et Politique: essai de dromologie (1977) – onde lança as bases de uma ciência da velocidade, servindo-se da palavra grega «dromos» (corrida) para baptizá-la –, defende que foi a revolução das tecnologias de locomoção que tornou possível a guerra à escala industrial. Foi, portanto, a possibilidade de mover números cada vez maiores de pessoas e objectos através de distâncias cada vez maiores e a maior velocidade que conduziu à guerra moderna, e à industrialização da morte.
Se Virilio se considerava um progressista, se nunca foi sua intenção promover uma fobia tecnológica, este filósofo percebeu que a aceleração significaria tornar obsoleto o humano, tornar-nos dependentes das máquinas e dos algoritmos para não sermos expulsos da nova realidade, marchando ao ritmo das operações que apenas os computadores são capazes de registar. Por receio de ficar para trás, abandonamos «o tempo da responsabilidade e da razão», ficando reféns de uma «opressão sem tirano». Sob este prisma, o ciberespaço e a velocidade não estavam a promover a globalização, mas apenas a virtualização. A internet era a ponte, não para um mundo mais próximo, conectado, mas para uma «colónia virtual», em que vivemos todos «uma vida de substituição». E em consequência desta desintegração dos territórios, nas intervenções e entrevistas que deu nos últimos anos, Virilio viu na expansão das redes sociais o perigo de, por via da «sincronização das emoções», se estar a abrir caminho para um «comunismo dos afectos» que resultaria numa forma de tirania evoluída.