Kosovo. A luta contra o silêncio no Campo dos Melros!

Kosovo. A luta contra o silêncio no Campo dos Melros!


A primeira vitória oficial da selecção kosovar (2-0 às Ilhas Faroé) marca significativamente uma nova era de um país que levou muito tempo a impôr-se ao mundo e que, aqui e ali, continua a não ser reconhecido


No dia 17 de Fevereiro de 2010, o Kosovo e a Albânia defrontaram-se num encontro particular mas nem por isso menos histórico: pela primeira vez desde a declaração unilateral de independência do país, os kosovares entravam em campo defendendo as cores da sua selecção.

No passado dia 10 de Setembro, a história ganhou tons ainda mais brilhantes: batendo as Ilhas Faroé por 2-0, para a fase de apuramento da Liga das Nações, o Kosovo estreou-se a vencer em jogos oficiais.

Muito tempo passou entretanto.

E a luta do Kosovo para ser membro de pleno direito da FIFA e da UEFA – apenas reconhecido em maio de 2016 – não foi tranquila, aliás como raramente são as verdadeiras lutas. Terminou a contento.

O pedido de filiação na FIFA foi entregue em 24 de outubro de 2008, após a separação do Kosovo da Sérvia. Como vêem, muitos dias tiveram, entretanto, os anos, por via da diplomacia necessária para dobrar o cabo das tormentas em que se tornou a resposta a tal requerimento: “Only an independent state recognised by the international community may be admitted into FIFA”. Ou seja: o carimbo foi taxativo – indeferido!

Ainda hoje, o Kosovo não é reconhecido por países como a Sérvia (razões óbvias), Rússia, China, Brasil, Espanha ou Angola. Dos 193 que compõem a Organização das Nações Unidas, apenas 111 afirmaram a sua posição a favor da independência dos kosovares. Parece uma questão exclusivamente política, mas sabemos que a política é como um daqueles nevoeiros londrinos que se infiltra através de tudo, mesmo no mais grosso dos casacos de tweed. E, assim sendo, tanto a FIFA como a UEFA viram-se em palpos de aranha para não ferirem susceptibilidades na altura dos sorteios das fases de qualificação para o Mundial de 2018, cuja fase final se desenrolou na Rússia, e Liga das Nações. Algo ficou desde logo bem definido: por razões de segurança, o Kosovo não defrontaria nem a Sérvia nem a Bósnia-Herzegovina.

 

A vitória!

Esta novidade chamada Liga das Nações, na qual Portugal teve um magnífico pontapé de saída dominando amplamente a Itália e ficando-se, como de costume, por um resultado curto, assistiu portanto à primeira vitória oficial do Kosovo. No Estádio Fadil Vokrri, em Pristina, perante cerca de 13 mil espectadores, Zeneli (50’) e Nuhiu (55’) quebraram a resistência dos feroenses no segundo tempo. Um delírio! Nada de multidões, que o país só tem pouco mais de um milhão e 800 mil habitantes, mas um delírio. Afinal, a paixão nacional pelo nobre desporto bretão vem de longe, ainda o Kosovo fazia parte desse fenómeno erguido pela vontade de um homem só chamado República Federativa da Jugoslávia.

Kosovo Polje: o Campo dos Melros. O nome estendeu-se a toda a Europa após a Batalha do Kosovo, que aí teve lugar em 1389 e que marcou uma fase da ocupação otomana dos Balcãs. O país e a selecção que nem toda a gente quer. No tempo do marechal Tito, o futebol da província era pouco mais do que residual na estrutura nacional. A Federação Nacional do Kosovo era um ramo da Federação Jugoslava. Basicamente, o campeão da primeira divisão kosovar ganhava acesso a disputar o campeonato jugoslavo. Clubes como o KF Pristina, o Llapi ou o Trepca (de forte afirmação albanesa) surgiram no principal escalão federativo, mas apenas a partir do início da década de 1970. Fadil Avdullah Vokrii, o homem que dá nome ao estádio, falecido no passado mês de Junho, assumiu-se como o melhor jogador da sua geração, com lugar firme na selecção jugoslava entre 1984 e 1987, e emigrando para França (Nîmes) e Turquia (Fernerbahçe).

Após a desagregação do sonho de Tito, o Kosovo entrou na complexa teia da auto-afirmação. No dia 14 de Fevereiro de 1993, a vizinha e camarada Albânia recebeu uma selecção kosovar num encontro semi-clandestino disputado em Tirana. A derrota por 1-3 foi o menor dos problemas. A FIFA, que volta e meia gosta de ser ditatorialmente criteriosa, veio a terreiro esclarecer que o Kosovo estava proibido de efectuar jogos internacionais, por mais amigáveis que fossem. Não houve muito tempo para testar a teimosia dos homens do Campo dos Melros. A guerra entrou sangrentamente nas suas vidas com a naturalidade de quem sempre soube instalar-se naquela zona massacrada do planeta.

Deixou de haver tempo para a bola. Os relvados foram trocados pelas trincheiras.

Janeiro de 2014 trouxe um nota de esperança: a FIFA passou a permitir ao Kosovo que disputasse particulares, desde que nunca contra países membros da ex-Jugoslávia. Ah! E nada de símbolos nas camisolas, bandeiras nos estádios e muito menos hino!

Que jogassem em segredo. E em silêncio, de preferência.