O governo prepara-se para aprovar esta quinta-feira, em conselho de ministros, o pacote de 23 decretos-lei que definem as regras para a transferência de competências do Estado para as autarquias. É a chamada descentralização, que prevê que as autarquias passem a ser as responsáveis pela gestão de serviços e pela contratação de pessoal que, até agora, eram do Estado, em várias áreas. É o caso da concessão de praias, da gestão das operações no combate aos incêndios e da gestão de estacionamento público.
Há ainda 12 decretos-lei em aberto, podendo alguns ficar consensualizados entre hoje e amanhã nas reuniões que vão decorrer entre as autarquias e o governo, revelou ao i o presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses, Manuel Machado, em entrevista via email.
No entanto, nem tudo está a decorrer de forma pacífica entre as câmaras, sobretudo nas áreas da educação e da saúde, com 22 autarquias a recusar assumir responsabilidades, pelo menos no próximo ano.
Manuel Machado frisa que a transferência das responsabilidades tem de ser “acautelada” e que o governo tem de dar às autarquias “garantias claras” de que as verbas que serão transferidas são suficientes para cobrir todas as despesas previstas.
Como está a correr o processo de descentralização?
A descentralização de competências da administração central para a administração local (autarquias e entidades intermunicipais) é, no atual momento político, uma importante reforma do Estado para as populações. É natural, e desejável, que seja um processo desenvolvido com profundidade, com o máximo rigor, com previsibilidade e com todas as cautelas a que obriga a importância que terá para as populações. É um processo que está a decorrer com normalidade. Mas é necessário acautelar o esclarecimento, de forma ponderada, de todas as questões em todas as áreas setoriais.
Quais são os principais pontos fracos da descentralização?
A grande dificuldade deste processo é que, apesar de ter o objetivo nobre de prestar um melhor serviço às populações, como isso implica recursos humanos e financeiros e os recursos do Estado são sempre limitados, é natural que existam dificuldades no momento da transferência de competências.
Qual é a vantagem da descentralização para o país?
Desde que a descentralização seja feita com rigor, previsibilidade e responsabilidade, e desde que seja acompanhada dos recursos humanos e financeiros adequados, ela contribuirá certamente para um maior desenvolvimento do nosso país e para uma maior igualdade entre todos os cidadãos, independentemente da dimensão dos municípios, da sua localização geográfica ou da densidade populacional.
Quantos decretos-lei setoriais já foram consensualizados?
Já foram consensualizados 11 dos 23 decretos-lei setoriais. Os diplomas do regime da organização dos serviços das autarquias; de policiamento de proximidade; de estacionamento público; de modalidades afins dos jogos de fortuna e azar; de captação de investimento ou gestão de projetos financiados por fundos europeus; de promoção turística; de segurança contra incêndios em edifícios; de áreas protegidas; de praias; de vias de comunicação e o da justiça são os setores em que já há consenso.
Quais são os diplomas em aberto?
Há outros cujas últimas versões serão analisadas amanhã na reunião do conselho diretivo da ANMP e que poderão ser consensualizados, e há ainda outros em que subsiste a necessidade de garantias claras acerca de elementos que estão em cima da mesa, de modo que não haja riscos desnecessários, como é o caso da educação e da saúde.
O que tem a dizer sobre as críticas do presidente da Câmara do Porto e dos autarcas que já fizeram saber que não vão avançar em 2019?
A lei-quadro prevê um processo de descentralização gradual até 2021. Até lá, os municípios apreciarão e decidirão sobre aquilo que considerem ser os interesses legítimos da sua população.
Pediram para que fosse criada uma comissão para apurar os valores previstos para cada área de competências a assumir. Já receberam resposta do governo sobre esse pedido?
Estamos a negociar decreto a decreto com o governo e, nesse processo, em cada um deles consta também a componente financeira. Em setores mais complexos do ponto de vista dos recursos humanos e financeiros deve ser criada uma comissão prévia de avaliação e validação, individualizada e concreta, entre cada município e o governo, antes da transferência de competências. O objetivo é analisar os elementos atualizados, designadamente os relativos às instalações e equipamentos, aos recursos humanos e aos recursos financeiros destinados a cada município. A existência desta comissão prévia é indispensável nas áreas da educação e da saúde, em que cada município terá de ter informação fidedigna relativa às competências que lhe serão transferidas.
Os números do governo não batem certo com os vossos cálculos? Qual é o valor previsto e quanto está em falta?
Os montantes são definidos setor a setor e, como grande parte dos decretos-lei ainda não estão consensualizados, e os de maior volume financeiro estão entre os não consensualizados, não é ainda possível falar de números com rigor. Só após a aprovação de todos os decretos-lei setoriais é que pode ser feita uma avaliação final e chegar a um número global rigoroso.
Quantos auxiliares de educação vão ser transferidos para as autarquias? E funcionários dos centros de saúde?
Podemos estar a falar de cerca de 45 mil funcionários a passar da administração central para a administração local, mas só saberemos o número exato quando o mapa de pessoal estiver devidamente definido por setor e por município.
Qual é o custo com as obras mais urgentes nas escolas? As câmaras vão substituir-se à Parque Escolar nas obras das escolas?
No que respeita à educação, e no que concerne às verbas destinadas às intervenções de conservação, manutenção e pequenas reparações, aceitamos um montante financeiro transitório, com o compromisso de, no prazo de um ano, ser revista a fórmula de financiamento, o que acontecerá na sequência de um trabalho técnico que será realizado nesse período. Para os investimentos em novas infraestruturas e em grandes reparações, como a construção, requalificação e modernização dos edifícios escolares, devem ser efetivados mediante a assinatura de um contrato-programa entre o Ministério da Educação e cada município, devendo constar desse contrato-programa os termos do respetivo financiamento.
Quando vão reunir novamente com o governo para discutir a descentralização?
O processo tem vindo a evoluir, mas não está concluído. A próxima reunião será depois do conselho diretivo da ANMP, amanhã à tarde, com o ministro da Administração Interna e o secretário de Estado das Autarquias Locais, para fazer o ponto de situação dos 12 decretos-lei setoriais que ainda não estão consensualizados.
Quantos autarcas já manifestaram a intenção de não avançar com o processo?
Não dispomos de elementos sobre essa matéria, mas reiteramos que a adesão dos municípios às novas competências só se poderá efetivar após a publicação dos diplomas setoriais, pelo que, neste momento, não existe qualquer matéria que possa ser objeto de deliberação dos órgãos autárquicos.
A transferência de competências para as autarquias poderia ir mais além?
Esta lei marca o arranque de uma reforma do Estado, gradual, que concretizará o alargamento de competências municipais num grande número de setores, progressivamente até 2021. Este é um processo dinâmico, com as dificuldades reconhecidas por todos, e, por isso, deve haver o máximo cuidado para que decorra bem e, posteriormente, se possa ir mais longe.
A última tomada de posição da ANMP teve um tom mais duro. O que levou a uma mudança no tom?
Não há qualquer tom duro na posição afirmada. A ANMP teve uma posição de firmeza como sempre tem na defesa dos municípios. Aliás, a ANMP tem proposto, nas reuniões dos grupos de trabalho, as comissões que agora propôs publicamente. Agora, como as redações das últimas versões dos decretos-lei setoriais não são suficientemente claras nessas matérias, reafirmámos as nossas propostas, insistindo na necessidade de que este processo de transferência de competências da administração central para a administração local seja tratado, até ao fim, com as cautelas exigidas pela sua relevância para a vida das populações.