Nos resquícios de agosto


A volatilidade da ausência de critérios sólidos é inimiga da qualidade dos serviços públicos e da qualidade de vida dos cidadãos


Neste verão aos zig-zagues, que sublinhou o fim da tradicional “silly season” e o recrudescer de uma proliferação de “silly acontecimentos” e dos correspondentes “silly protagonistas”, está à evidência a importância dos critérios e dos limites como prontuários do funcionamento da sociedade portuguesa. Qualquer decisor, quando não estritamente condicionado pela letra da lei, está confrontado com a incorporação do critério na construção das soluções políticas. Qualquer decisor e os cidadãos estão confrontados com os limites, os mínimos e os máximos que, por regra, são configurados pela letra da lei.

Há muito que defendo que o Estado deve definir com clareza que funções e responsabilidades assume, assegurando depois todos os recursos correntes necessários ao normal desempenho dessas tarefas. Num quadro de elevados passivos acumulados, decorrentes dos períodos de austeridade severa do passado, garrotear as funções do Estado com elevadas cativações, pode ser uma bênção para as metas do défice, mas é sempre um descalabro para a sustentabilidade dos serviços, para os profissionais colocados no fio da navalha e para os cidadãos que a ele pretendem aceder. Na saúde e na mobilidade proliferam as situações de pré-rutura e rutura que resultam desses passivos, das cativações e da incapacidade para perceber que da mesma forma que é suposto o ser humanos se alimentar todos os dias, há funções do Estado que precisam de alimentos diários estáveis. Nesta matéria, é tão irresponsável quem não fez no passado como quem não faz no presente perante a evidência dos sinais. Uns invocarão a troika, outros enunciarão as cativações das finanças ou as insuficiências das dotações orçamentais, aos cidadãos basta reafirmar os discursos políticos do fim da austeridade e o estado de necessidade no acesso ao serviços públicos. Descontadas as mediatizações e os oportunismos de classe na projeção da realidade, a verdade é que a bota não bate com a perdigota. Não faz sentido continuar a perorar sobre as virtualidades gerais da solução, quando esta apresenta estes níveis de fragilidades, com impactos reais na vida concreta das pessoas e na sustentabilidade das funções do Estado. É certo que não é generalizado, que são nichos, os que têm de aceder ao Serviço Nacional de Saúde, de percorrer as estradas nacionais ou de apanhar um comboio em Beja ou nas Caldas da Rainha, mas não deixam de estar no coração das funções que o Estado assumiu como suas. Não havendo critério, o critério são os serviços públicos das funções do Estado. Das que assume nas suas mãos e das que, tendo concessionado, tem de assegurar que são realizadas de acordo com os pressupostos da concessão.

O problema é que o Estado não define o critério apertado de onde não pode falhar, do limiar mínimo de responsabilidades, remetendo-se a um comodismo de crença no funcionamento dos serviços com recursos mínimos, de resposta de reforço de meios em função das crises ou das ruturas, mais ou menos mediatizadas, e, no limite, de um mero critério político. Um critério mais ou menos arbitrário, que muda em função das orientações políticas e das soluções de governo, deixando os cidadãos e os serviços à mercê desses estados de alma.

A volatilidade da ausência de critérios sólidos é inimiga da qualidade dos serviços públicos e da qualidade de vida dos cidadãos. É como a solidez do caminho percorrido, em que boa parte do emprego criado radica em baixos salários e soluções de trabalho por turnos, ambos desincentivadores da natalidade e da construção de bases familiares sólidas. E é neste quadro de falta de solidez e da ausência de critério que se avança com incentivos ao regresso dos que partiram entre 2011 e 2015? Com que fundamentação no critério temporal e na discriminação positiva? Uma vez mais, a falta critério e a falta explicação da fundamentação. Nos vários quadrantes político-partidários, excetuando o PSD que prima pelo silêncio ou por propor o contrário do que fez no governo, a falta de rigor, de explicação e de sentido de sustentabilidade. Haverá um dia em que os cidadãos vão começar a exigir que a política seja mais do que o enunciar de ideias, mais ou menos populares. Um dia em que o exercício seja de explicação, de interação e de transparência/escrutínio das opções e dos resultados. Não antevejo que seja possível prosseguir com este soporífero exercício durante muito mais tempos. É que se as instituições e os partidos não o fizerem, as redes sociais, com os riscos conhecidos, fá-lo-ão. É a vida dirão alguns.

NOTAS FINAIS

Trovoada. Os mecanismos de apoio em situação de catástrofe têm de ser céleres, eficazes e rigorosos. As falhas enunciadas na reconstrução dos incêndios de 2017 são graves. Minam a credibilidade dos critérios do Estado e minam o sentimento de solidariedade dos portugueses. Tem de haver uma rápida investigação e a consequente punição implacável de eventuais oportunistas.

Aguaceiros. O que choca nos milhares e no milhão das transferências das estrelas televisão é saber-se o estado financeiro desses grupos de comunicação social, razão que fundamentou a proposta de desvinculação de muitos profissionais qualificados de informação, a troco da contratação de novos profissionais a auferirem quantias irrisórias e sujeitos aos impactos da precariedade na qualidade da informação.

Nebulado. O problema dos comboios especiais não é ter havido um comboio para a Festa de Verão do PS em Caminha. É ter havido esse comboio depois de a CP ter cancelado serviços similares por falta de material, por exemplo, ao Sport Lisboa e Benfica. Uma vez mais, o problema é o do critério.

 

Escreve à quinta-feira