Cadáveres dissecados a darem as mãos, um a simular corrida e outro como se estivesse a nadar. São alguns dos 14 corpos, a que se juntam mais 200 peças com órgãos e partes de corpo, que se podem ver na exposição “Real Bodies”, no Centro Nacional de Exposições, em Birmingham, Reino Unido. Este género de exposições sempre foi alvo de polémica. Não é a primeira vez que surgem suspeitas deste tipo, mas agora parecem ganhar contornos de maior plausibilidade. Os responsáveis da exposição estão a ser acusados por um médico neurologista, David Nicholl, de terem usado corpos que pertenceram a condenados de campos de trabalhos forçados e prisões na China sem que eles ou os seus familiares o tenham autorizado. Por seu lado, os responsáveis da exposição garantem que são todos corpos que nunca foram reclamados, ainda que não o possam provar.
“Tenho imensas questões sobre todos estes corpos nunca reclamados que vêm de Dalian [na China] em números consideráveis e quantos corpos a Imagine Exhibitions realmente tem”, disse Nicholl ao “Guardian”. “São todos homens jovens – nenhum deles é idoso, o que devo dizer que é bastante suspeito dado que existiam [próximos de Dalian] vários campos de trabalho forçados”.
O neurologista não é o único a questionar a origem dos corpos. Também Ethan Gutmann, jornalista de investigação norte-americano, alega que os corpos da exposição podem ser de prisioneiros políticos que praticavam Falun Gong, religião proibida na China no final da década de 90. Acredita-se que a proibição resultou na detenção e execução de milhares de pessoas nos campos de trabalhos forçados chineses. “É um crime contra a humanidade”, garantiu Gutmann. “Várias centenas de milhar de pessoas foram executadas simplesmente por praticarem Falun Gong e temos uma empresa que provavelmente está a espalhar as provas por todo o mundo”. Em 2012, o Supremo Tribunal de Israel baniu a exposição, segundo Nicholl. E a República Checa alterou, em julho de 2017, a lei sobre consentimento dos falecidos antes que a exposição fosse autorizada a entrar no país, barrando-a.
O presidente da Imagine Exhibitions, Tom Zaller, descarta liminarmente quaisquer suspeitas sobre a origem dos corpos da exposição, afirmando que todas as notícias não são mais que “fake news”. “Recuso-me a entreter as pessoas com estas acusações ridículas sem uma réstia de provas que suportem estas alegações infundadas”, disse Zaller. Ainda assim, admitiu que não tem documentos que provem a identidade dos corpos ou que tenha sido dado consentimento para serem dissecados e expostos. Os corpos foram fornecidos pela empresa Dalian Hoffen Bio-Technique e foram preservados com um processo chamado plastinação, processo que substitui água e gordura corporal por plásticos.
A Universidade Médica de Dailan também veio a terreiro garantir que nenhum dos corpos cedidos à exposição foi reclamado e que cumpriu todas as suas responsabilidades legais. “Todos os espécimes são corpos não reclamados e foram legalmente autorizados à doação pela morgue da cidade”, pode ler-se no comunicado da instituição. E rejeitou quaisquer acusações de que as pessoas cujos corpos estão expostos morreram de causas não naturais: “Não existe absolutamente nenhuma prova de que tiveram qualquer trauma ou abuso físico associado a tortura, execução ou outro tipo de violência”. Os corpos foram recolhidos pela morgue da cidade chinesa e doados à universidade e, mais tarde, a instituição de ensino doou os corpos à empresa para serem dissecados, preservados e colocados em exibição.
Para eliminar todas as suspeitas e mais algumas, Guttman sugere que se realizem testes de ADN aos corpos. “O ADN pode ser extraído e usado para provar relações familiares”, garantiu o jornalista. “Se fizermos algumas correspondências poderemos identificar as linhas familiares e perguntar aos familiares: ‘têm alguém desaparecido na família?’”.
A polémica atingiu proporções inéditas no Reino Unido. Um conjunto de personalidades da sociedade britânica, incluindo médicos, advogados, deputados e ativistas, enviou uma carta à primeira-ministra britânica, Theresa May, a pedir para que a exposição seja encerrada e investigada. A resposta não se fez esperar, com a primeira-ministra a dizer que a exposição estava autorizada e que “a responsabilidade por a acolher e manter os padrões éticos cabe ao Centro Nacional de Exposições”.
A própria instituição sentiu-se obrigada a esclarecer que se tivesse considerado imoral teria contactado “a autoridade de tecidos humanos” para que “desse autorização”. Segundo a lei britânico sobre tecidos humanos de 2004, “remover, armazenar ou usar tecidos humanos sem consentimento apropriado” é crime, mas como os corpos foram importados a lei não se lhes aplica. É precisamente por causa desta lacuna na lei que a exposição foi autorizada pelas autoridades britânicas.
Antes desta exposição, já outras trilharam caminho entre as sucessivas polémicas após a abertura de portas. Em 2005, a exposição “Corpos…a exposição” foi inaugurada na Flórida, Estados Unidos, e dez anos antes uma outra, “Corpos do Mundo”, tinha dado origem ao género em Tóquio, Japão. Dezenas de milhões de pessoas visitaram as exposições e a “Real Bodies” provavelmente não será diferente. E a polémica certamente que atrairá mais visitantes.