Os ataques contra a imprensa pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, não têm parado de escalar, mas agora terão uma resposta à altura. Não menos de 100 publicações norte-americanos irão, esta quinta-feira, publicar, coordenadamente, editoriais a denunciar os ataques do chefe de Estado à imprensa.
A iniciativa partiu do jornal “Boston Globe” e contou com a rápida adesão de muitas dezenas de outras publicações, tanto nacionais como regionais. E também já tem o apoio da Sociedade Americana dos Novos Editores. “Esta guerra suja contra a imprensa tem de terminar”, pode ler-se no apelo. “As publicações, independentemente da sua orientação política, podem avançar com uma forte declaração ao manterem-se unidas na defesa comum da sua profissão e no papel vital que desempenha para o governo e povo”, continua o documento.
Cada jornal escreverá um editorial próprio para abordar o assunto da forma que entender mais apropriada, mantendo a sua independência. “As nossas palavras vão ser diferentes. Mas pelo menos concordamos que estes ataques são alarmantes”, lê-se no apelo.
“Contamos com a adesão de mais de 100 publicações e espero que o número venha a aumentar nos próximos dias”, disse Marjorie Pritchard, do conselho editorial do “Boston Globe”, à CNN. “Temos alguns grandes jornais, mas a maioria são pequenos, todos entusiastas em confrontar Trump na sua investida contra o jornalismo”, acrescentou.
A guerra de Trump contra a imprensa começou quando ainda era candidato à nomeação republicana para a Casa Branca, em 2015, mas desde aí que não tem parado de subir de tom. Usando e abusando da narrativa das “fake news” para desvalorizar todas e quaisquer notícias que lhe sejam desfavoráveis, Trump subiu a parada ao classificar a imprensa de “inimiga do povo norte-americano” – termo comummente usado em regimes ditatoriais. Narrativas nunca antes usadas por quem ocupa o cargo máximo no sistema político norte-americano, nem sequer pelo antigo presidente Richard Nixon quando confrontado com o escândalo “Watergate”, denunciado pelo Washington Post, em 1972.
Enquanto se desdobra em comícios por todo o país, onde profere discursos contra a imprensa, Trump não se coíbe de a atacar na rede social Twitter. No início do mês, o chefe de Estado acusou os média de ficarem “insanos” e de colocarem em “risco a vida de muitos, não apenas de jornalistas” depois destes últimos o terem criticado pela sua retórica “divisionista” e “perigosa”. E se não bastasse, acusou-os de serem “muito antipatriotas”. Mas nos últimos tempos, a administração Trump não se ficou pelas palavras, passando mesmo aos atos para condicionar o trabalho dos jornalistas.
No final de julho, uma repórter da CNN, Kaitlan Collins, foi impedida de cobrir uma conferência de imprensa no jardim da Casa Branca pelos responsáveis de comunicação de Trump, Bill Shine e Sarah Sanders. Durante uma sessão fotográfica entre o presidente dos EUA e o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, foi-lhe dito que o acesso lhe estava vedado por ter feito perguntas desconfortáveis sobre as gravações do antigo advogado pessoal de Trump, Michael Cohen, . “Eles disseram: ‘Estás desconvidada para a conferência de imprensa de hoje no jardim’”, explicou Collins em entrevista à CNN. “Disseram que as perguntas que fiz eram inapropriadas para aquele momento e que estava a gritar”, acrescentou.
Se a Fox News é o canal preferido de Trump, já a CNN tem sido um alvo constante das críticas do chefe de Estado, que se recusa a responder às perguntas dos jornalistas daquela cadeia em conferências de imprensa. Em meados de 2017, Trump publicou um vídeo no Twitter em que fazia uma placagem a um homem com o logo da CNN na cabeça – e foi acusado de incitar à violência.
As críticas de Trump à imprensa não passaram despercebidas ao Alto Comissário dos Direitos Humanos das Nações Unidas, Zeid Ra’ad al-Hussein, que acusou Trump de usar uma retórica muito próxima do incitamento à violência. “Começamos a ver uma campanha contra os média que poderá, e ainda pode, colocar em movimento uma cadeia de eventos que facilmente poderá resultar em ferimentos a jornalistas que apenas estão a fazer o seu trabalho e levar a alguma autocensura”, afirmou Zeid em entrevista ao jornal britânico “The Guardian”. “Nesse sentido, está muito perto do incitamento à violência”, criticou.
São José Almeida, presidente do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, vê nestes ataques uma forma de condicionar o trabalho dos jornalistas. “São sem dúvida uma forma de tentar condicionar o livre exercício do jornalismo”, garante ao i. Ainda assim, não considera que a “liberdade de imprensa não está em risco nos Estados Unidos”. Já Joaquim Vieira, presidente do Observatório da Imprensa, não tem dúvidas quando afirma que o discurso de Trump é um “ataque à democracia” com uma retórica para tentar esconder as suas mentiras. “É uma pessoa que não está a respeitar a liberdade de imprensa e de escrutínio. Trump mente mais do que diz a verdade. Com um ano e meio de mandato, já ultrapassou as quatro mil mentiras”, diz Vieira ao i.
E a possibilidade de incidentes violentos contra jornalistas não pode ser descartada. “Os ataques feitos nesses termos podem levar, em extremo, a situações de violência. Não diretamente, mas podem influenciar”, refere São José Almeida. Consequência que, explica Vieira, resulta de Trump tentar “virar a opinião pública contra a imprensa”. Entre os apoiantes de Trump, a CNN é hoje vista como uma das principais inimigas de Trump e parte do sistema político que consideram corrupto. No final de julho, um jornalista do mesmo canal televisivo, Jim Acosta, foi vaiado por apoiantes de Trump enquanto cobria um comício presidencial em Tampa Bay, na Flórida. “CNN não presta”, “traidor” e “és um mentiroso” foram alguns dos insultos de que foi alvo.