Dimitris Perifanos esteve entre os pescadores que ajudaram a salvar quem se atirou à água para fugir do fogo. “Deve estar orgulhoso, o significado do seu nome em grego”, diz a jornalista. “Não estamos, eram as nossas crianças”, responde o homem consternado, antes de sair do plano. “O que fizemos foi a nossa obrigação enquanto seres humanos.” A cena repetiu-se vezes sem conta esta semana na televisão, na voragem de mostrar o inferno na Grécia, imagens afinal tão próximas da tragédia que Portugal conheceu há um ano. Noutro canal, outra jornalista, desta vez portuguesa, entrevista um porta-voz da Cruz Vermelha em Rafina. “O que é que viu de que não quer falar?”, pergunta, explicando que teve de insistir para o trazer à emissão. “Dor humana. O que há a dizer sobre isso?”, devolve o responsável.
O que cá deixou de ser inimaginável há um ano aconteceu a metros do mar na Grécia. Mais inimaginável ainda, pelo menos visto assim, à distância, que lá como cá não faltaram alertas. Talvez mais espaçados no tempo. Talvez menos urgentes do que são agora que o fogo levou tudo pela frente, em instantes, o tempo de tentar fugir e ser apanhado. Regressam os debates, os especialistas e sobretudo essas imagens desoladas de dor e a tentativa de lhes pôr palavras por cima, por vezes sem jeito, por vezes exageradas pela obrigação de reportar algo que fala por si no instante em que está acontecer, na manhã depois dos corpos no mar – como parece ter sido a conversa com Perifanos a bordo do barco de salvamento – ou nos momentos em que quem perdeu tudo entra de novo em casa e vê o que já não existe. Há algum cuidado, costuma haver nestas alturas, mas uma das imagens que passaram mostrava um corpo carbonizado – a tragédia é-nos próxima, mas a distância parece quebrar filtros.
Tenta-se coletivamente gerir o choque e iniciar a reflexão, perceber como estar preparado – ficar em casa? Não ficar em casa? Neste tempo mediático sem fronteiras, e para lá do que parece tantas vezes mero sensacionalismo, poderia a tragédia em Portugal ter tido algum eco a nível europeu que fizesse aumentar a consciencialização da população? Ditar planos de emergência em todas as zonas de interface com floresta? Poderia ter minorado a tragédia grega?
E nós, continuamos a aprender? Aprendemos alguma coisa com estas novas imagens de dor? Há dias, um fogo à beira de uma autoestrada junto a Palmela trouxe dúvidas sobre as lições de 2017. Tudo controlado, garantiram as autoridades. Na estrada, quem lá estava e viu a cortina de fumo decidiu como achou melhor, invertendo a marcha, na ausência de informações. Houve quem saísse dos carros, aumentando o risco de ser atropelado na fuga. O medo leva a decisões irracionais. Quem as pode julgar?
As alterações climáticas surgem mais uma vez como pano de fundo desta sombria realidade dos megaincêndios. Quem deixa o mar da República Dominicana transformar-se num balde de lixo – como as nossas praias, a uma escala diferente, se enchem também de lixo nesta altura – estará consciencializado? Numa notícia mais curta da semana que passou ouvia-se que metade das cegonhas recuperadas no Algarve têm plástico no estômago. Balões, borracha. Será que ainda vamos a tempo de travar o crescendo de poluição, dos plásticos aos gases com efeito de estufa? Travar as consequências? Seremos capazes de nos tornarmos menos egoístas?
Se só há um ano o facto de estas tragédias poderem ser cada vez mais comuns nos alarmou, os números de desastres naturais, que as alterações climáticas tendem a extremar – e onde se incluem incêndios florestais, mesmo quando a origem é humana –, impressionam. Segundo o Internal Displacement Monitoring Centre, em 2016 causaram 23 milhões de desalojados a nível mundial, com as cheias a serem as ocorrências com maior impacto. Empurraram milhões para a pobreza. Significam mais desigualdade. Não é cá – ou, pelo menos, não é cá agora, que também temos zonas costeiras vulneráveis à subida do nível do mar, a cheias devastadoras. As chuvas torrenciais que mataram e destruíram no Japão no início deste mês não são cá agora, mas podem ser amanhã. O que tiramos das imagens de dor para o futuro?
P.S. Num jornal da noite perguntava-se quanto ia custar enviar ajuda para os países a braços com o fogo. O secretário de Estado optou por não responder – disse que era algo que nem se colocava, tal como há um ano não se questionou o preço da ajuda que veio para Portugal. A insistência pode ter parecido deslocada – a solidariedade é a única resposta possível do país. Mas agora, como há um ano, a transparência do Estado não devia ser motivo de discussão.
Jornalista
Escreve à sexta-feira